‘Amor sem Escalas’ e o vazio das relações líquidas

“Amor sem escalas” começa como um filme cínico, daqueles pensados para dar a sensação de um “soco” no estômago que te faz acordar para a vida real. Quando você menos percebe, o próprio roteiro começa a questionar a validade de toda esta injeção de realidade. Por isso e muito mais mereceu, em minha opinião, o Globo de Ouro de Melhor Roteiro para Jason Reitman, que também assina a direção.

George Clooney interpreta aqui o solteiro convicto Ryan Bingham, consultor de uma terceirizada especializada em demitir funcionários para outras empresas. Orgulhoso da própria liberdade e especialista em relações líquidas (superficiais, que não duram, por isso diz-se que “escorrem entre os dedos”), Ryan é convincente ao enumerar as vantagens de não ter nada e ninguém que o prenda a lugar algum, nem nada de pesado para carregar na mochila. Sua maior ambição é atingir a marca de 1 milhão de milhas acumuladas por suas viagens de negócios para poder dar a volta ao mundo – sozinho!

Algo nesse discurso perfeito, que Ryan costuma repetir em palestras a conferências de executivos mundo afora, começa a fazer água quando sua empresa o encarrega de treinar uma executiva recém-formada (Anna Kendric) por algumas viagens.
Não é nada repentino. Primeiro ele se relaciona com uma atraente executiva que parece comungar seu perfil de desapego. Depois, começa a sentir-se responsável pela jovem trainee, que confrontada por um choque cavalar de realidade, começa a questionar todas as suas teorias prontas sobre a vida.

Uma cena emblemática dá pistas de que algo está mudando dentro de Ryan quando ele volta do casamento da irmã caçula – ao qual decide ir de última hora, já que sempre odiou reuniões de família. Ao chegar em seu apartamento, tira da mala três cabides, que pendura em guarda-roupas absolutamente vazio – como os de hotéis em que se hospeda; entra no banheiro de azulejos brancos e neutros como todo o restante do apartamento e, ao pegar a escova de dentes, congela diante de sua imagem no espelho. Parece que está se olhando de verdade pela primeira vez. Entendemos, por associação, que é a sua vida, neutra e vazia, como aquele apartamento, que ele começa a enxergar com um novo olhar.

Não vou entregar o que ele faz a partir desta tomada de consciência, mas basta saber que experimentará uma dose cavalar do cinismo que sempre dispensou aos outros.

No final das contas, “Amor sem Escalas” passa uma mensagem muito mais nobre do que esperávamos no começo: a de que é preciso, sim, coragem para aceitar todo o estresse, renúncias e – sim – tédio que vêm junto com os laços afetivos, mas que sem eles a vida fica sem cor. O melhor é que o filme mostra isso sem adotar os habituais recursos “melosos” dos romances e com um olhar muito adulto e realista. Pontos para seu diretor-roteirista, que parece saber, aos 32 anos, o que seu personagem levou algumas décadas a mais para descobrir.