Sobre preconceito e segundas chances

Durante a última semana, ouvi pelas ruas e redes sociais as mais diversas opiniões sobre a morte do ex-interno da Fundação Casa Patrick Cardoso dos Santos, 20 anos, por PMs que invadiram sua casa, na zona norte de Ribeirão Preto.

“Vagabundo tem que morrer”; “não podia ter outro destino uma vida como a dele”; “não tinha conserto”. Tais eram os teores dos comentários.

Voltou-me à memória o polêmico documentário “A Ira de um Anjo”, que me chegou via Facebook sob o título “Crianças psicopatas: a incrível história de Beth Thomas”. O vídeo de 40 minutos começa mostrando uma menina de 6 anos respondendo a perguntas de seu psiquiatra. Seu rostinho angelical não trai o menor traço de emoção ao dar respostas desconcertantemente sinceras numa vozinha doce de criança.


“Vagabundo tem que morrer”; “não podia ter outro
destino uma vida como a dele”; “não tinha conserto”


“Eu batia a cabeça dele no chão (…) eu queria matá-lo”, contava, quando questionada sobre agressões feitas ao irmãozinho. “Eram para matar mamãe e papai”, respondia sobre as facas que escondia em seu quarto.

A norte-americana Beth Thomas tinha 1 ano e meio quando foi adotada, junto com o irmão ainda bebê, por um casal religioso. Durante os quatro anos seguintes, seu comportamento entrou numa espiral de agressividade que levou seus pais adotivos a trancarem seu quarto a chave quando ela ia dormir, para que não atentasse contra a vida da família.

Mas o casal não desistiu de Beth. Procurou ajuda.

O psiquiatra que atendeu a menina descobriu que ela foi molestada pelo pai biológico durante todo o seu primeiro ano e meio de vida, o que a impediu de desenvolver afeição por qualquer ser humano – o outro era sempre uma ameaça. Desenvolveu no lugar muita raiva e uma sexualidade antinatural para sua idade – masturbava-se em qualquer lugar.

Enquanto me inteirava dessa parte da história, mesmo extremamente penalizada, fui traída por um primeiro pensamento preconceituoso: “essa menina não tem conserto, só poderá virar um adulto ruim”.

Não virou.


“essa menina não tem conserto, só
poderá virar um adulto ruim”. Não virou


Beth foi internada em uma instituição especializada no atendimento a menores com problemas comportamentais. O programa consistiu em reconstruir sua auto-estima para torná-la apta a desenvolver laços afetivos e, na sequência, conquistar a capacidade de colocar-se no lugar do outro – o que comumente chamamos empatia.

Quase ao final do vídeo assistimos Beth aos 10 anos chorando amargamente ao tentar responder às mesmas perguntas do primeiro vídeo. Já tinha sentimentos.

Se os pais, médicos e psicólogos que a acompanharam tivessem se rendido a um primeiro pensamento-reflexo como o que tive – ou a preconceitos semelhantes aos das pessoas que aplaudem a morte Patrick -, a “criança psicopata” não teria sido recuperada para um final de infância e adolescência normais e nem se formado enfermeira aos 20 e poucos anos para ajudar outras vítimas como ela.

Hoje Beth também trabalha numa instituição especializada no atendimento a crianças abusadas. Transformou a experiência ruim em aprendizado útil a outrem.


Sem o acolhimento que teve Beth Thomas, cumpriu, nos dez anos seguintes, oito internações na Fundação Casa, por crimes que foram de latrocínio a homicídio


Patrick não foi abusado – não sexualmente. Seu trauma foi o abandono, que o fez, aos 10 anos de idade, pegar a arma do pai para fazer o primeiro assalto – longe da mãe e com o pai preso, já estava por sua própria conta.

Sem o acolhimento que teve Beth Thomas, cumpriu, nos dez anos seguintes, oito internações na Fundação Casa, por crimes que foram de latrocínio a homicídio. Mas quando conversou com nossa colega Daniela Penha, há alguns meses, ainda falava em dar um rumo diferente à sua vida.

Psicólogos e assistentes sociais que o avaliavam desde a primeira internação, em 2008, acreditavam nele, pois o descreviam como comunicativo, calmo, respeitoso e com liderança positiva.

As várias vezes que Patrick voltou pra escola ao longo dos últimos anos também deram pistas de suas intenções de mudar, mas algo sempre o levava a abandoná-la e voltar ao crime.

Na última semana, menos de um mês após cumprir sua última internação, Patrick foi apontado como autor do homicídio de um policial e acabou morto por outro – legítima defesa, alega a polícia.

O Ministério Público investigará se a morte do jovem foi uma retaliação, mas já não fará diferença para ele. Ao contrário de Beth Thomas, Patrick nunca terá outra chance.