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Sobre coisas que dão na barriga

Dentro de 4 horas começaríamos nossa peregrinação pela Itália e meu abdômen fazia barulhos estranhos.

O medo.

Fui para o banheiro da pousada de Aosta no meio da noite, enquanto a Kele dormia. Não tínhamos tido entreveros desde que saímos do Brasil, mas eu sabia – só eu sabia! – o quanto tudo aquilo me punha em estado de alerta, como uma personagem de filme de terror em um corredor escuro, ouvindo portas rangerem, passos lentos, vendo os pingos da tempestade escorrerem na janela… e ainda aquele frio… o arrepio gelado escalava minhas costas.

Eu era um bicho acuado, o filhote que não sabe descer da árvore. Não se tratava só de vencer os 750 km a pé, mas de tudo… do suspense, da timidez, de pousar os olhos em um fantasma horroroso e conseguir rir dele: “você não é de nada, cara!”

O banheiro charmoso não me dava chances reais de fazer dele um cenário de terror, nem chovia lá fora como minha mente insinuava. As acomodações eram ótimas e eu podia considerar que tinha acertado na minha primeira reserva pelo Booking!

A pousada ficava em um prédio antigo e bem localizado, de paredes grossas, portas baixas, corredores estreitos, escadas acentuadas e iluminação amarela. Não tinha recepção. Entramos nela, saímos e não vimos ninguém por lá. Um jeito muito quieto de fazer as coisas.

Isso eu recapitulava no banheiro, tentando domar o piriri  e me acalmar.

Se a Kele acordasse, acharia uma companheira serena como uma montanha. Eu diria: “não estou conseguindo dormir” e abriria um sorriso terno, como se tudo estivesse ótimo. Mas a montanha tinha coração de vulcão e esperava, com a viagem, mudar seu padrão de comportamento para algo mais leve, transformar-se em duna.

Minha barriga dava nós.

Se conseguisse encarar aquilo, tentaria me livrar de alguma de minhas amarras. Seria o dia de me permitir errar sem culpas. Pensava em ir mentalizando “você pode errar, você pode errar”, como se dissesse um mantra.

Até tinha feito um roteiro de coisas que eu queria conseguir naqueles 30 dias, do mesmo jeito que se faz roteiro de pontos turísticos. Talvez por isso mesmo tenha surgido aquele medo medonho.

Eu queria seguir o mapa do tesouro, sendo o tesouro eu mesma.

Não queria ganhar coisas, mas perder, me esvaziar.

Esperava respirar o novo, prender o ar e deixá-lo depurando minhas células.

Observar os lugares feios e os bonitos sem paixão. Não tomar o melhor vinho, mas um qualquer. Não queria mais me encolher, nem controlar.

Não queria me amedrontar mais e, não obstante, indiferente a meu querer, o bicho estava bem ali comigo no banheiro, de madrugada, grudado.

Dentro de poucas horas, nos juntaríamos ao grupo e iríamos a pé para Châtillon, a 34 quilômetros daquele banheiro de Aosta. A Regiane seguiria de trem com a Vera, que estava machucada, e levariam parte de nossas bagagens, o que aliviava em meio quilo o peso programado para minhas costas e faria enorme diferença no maior trecho de montanha de todo o trajeto.

Mesmo tudo parecendo certo, eu só pensava em pular esse dia e  começar a trilha no próximo.

Vista de Aosta do caminho para Chatillon

Mas fui, levada pelo rio da vida e só parei de seguir adiante um mês depois, quando chegamos a Siena.

Uma fresta sempre me impele a ir em frente.

Aliás, continuo na trilha da Francígena, como um fantasma andarilho. Parte de mim fica vagando por lá, medindo as perdas, colhendo os ganhos, me alimentando com os flashs do que vivi.

Essa foi uma daquelas viagens feitas de estradas mágicas, que vão se colocando sob nossos pés. Pensamos já estar andando por outra, ou em um shopping, mas de repente a vemos, a cruzamos, andamos nela mais um pouco. É uma leveza que impregna e que me ajudou, sim, a dar uns passos novos.

No trajeto, eu me espantava com as reações corajosas das outras peregrinas.  Às vezes eu passava horas andando e refletindo sobre o quanto o medo me atrasava a vida, e também no quanto aquele pulsar de auto-preservação me fazia bem.

Descobri que o medo me levava para longe do confronto, amornando-me, esfriando-me, e que há menos liberdade para quem teme. Ele ocupa muito espaço.

E eu queria fazer minha re-ocupação. Queria muito ter feito, só que desta vez não deu.

Talvez eu consiga um pouco mais na próxima. Para ela, e para bater pernas por aí, tenho planos de estampar em uma camiseta a frase do Confessio Fraternitatis com a qual me emocionei ao voltar para casa: “Ir ao encontro do sol nascente, com a cabeça descoberta, o coração aberto e os pés nus”. Vou dar um nozinho nela e deixar a barriga aparecendo.

Será meu troféu,  não por ter ganho a batalha, mas pela bravura da luta em terras tão adversas.

 

GALERIA (clique nas fotos para ampliá-las)

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


Esta é a primeira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Aosta-Chatillon, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora.

 

 

 

Leia o texto de apresentação desta série: Histórias de peregrinas pedem passagem

Histórias de peregrinas pedem passagem

Sempre ouvimos dizer que pescadores exageram as histórias que contam, mas eles perderão o posto em breve. O motivo: somos um grupo de peregrinas que começará a publicar aqui no Palavreira a série de histórias “Pé Dá Letra“, sobre o bate-perna que fizemos na Itália em 2017. Zanzamos cerca de 750 km basicamente por áreas rurais de lá e, convenhamos, nem sempre acontecem coisas tão incríveis em um trajeto assim… O jeito vai ser dar aquela exageradinha, juntando umas pitadas de invencionices… uma certa licença poética para enfeitar a história real.

Para fazer o “esquenta” da série, o caso abaixo é um testemunho “ponta firme”:

Quando saí da Caixa Econômica Federal – onde trabalhei por 27 anos – no fim de março passado, meu único plano era me ocupar com minha própria reinvenção. Isso não é sinônimo de plástica na cara, não. Comecei a fazer uma mistura de redescoberta, revelação e reconstrução, que ainda seguem. Estas são palavras que começam com “re”, assim como recomeço e Renata. Quem é ela?

Renata, vocês verão, foi a capitã do “Exército de Brancaleoni”. Nem bem me viu soltinha, ela refez o convite para que eu integrasse o pelotão que partiria em junho para andar em uma parte da Via Francígena, que tem cerca de 1.900 km no total. Topei apenas porque não ia aguentar ficar em Ribeirão Preto vendo as fotos delas no Facebook. Para fugir do sofrimento da inveja,  passei os dois meses seguintes entretida em treinar e comprar tudo o que era preciso para a empreitada.

A mochila tinha que ter um camel back; a bota precisava ser uma Salomon duas numerações acima da minha; as roupas – segunda pele, fleece, legging, anorak para muita chuva, um vestido, roupa para dormir, camisetas e calça de trilha – tinham que ser levíssimas, como a mochila e o saco de dormir.  Lanterna, carregador de celular, toalha de banho, chapéu de peregrina, óculos de sol, uma Havaianas, primeiros socorros… todos estes itens não podiam pesar mais do que 6 quilos, pois na trilha ainda entrariam a água e os lanches de cada dia.

A Regiane, a Renata, a Sheila e a Vera começaram a peregrinar na Suíça três dias antes de mim e da Kele. Elas já entendiam do riscado, ao contrário de nós, estreantes, que começamos em Aosta, na Itália, onde nos encontramos.

Foi aí que foi escrita a primeira crônica desta série, “Nosso Incrível Exército de Brancaleoni”, que sairá na próxima quarta-feira. A Adriana chegou na Francígena alguns dias depois, quase ao mesmo tempo em que a Vera nos deixou. Entre nós havia um homem eletrônico chamado GPS, ou Marcelo, e uma mulher eletrônica, a danadinha da GoPro (se vocês ainda não leram as peripécias da GoPro na crônica Take a Photo, my Love, fica a dica).

Assim, éramos seis mulheres brasileiras que todas as madrugadas partiam com suas mochilas nas costas, andavam o dia todo sem saber como seria a paisagem depois da próxima curva, como seria a próxima cidade em que chegariam, se o alojamento daria certo, o que comeriam, se o banho seria quente, se acertariam o caminho, se o dinheiro ia dar…

O que vivemos foi divertido e quase daria um livro. Talvez esse dia ainda chegue encadernado. Por ora, transformou-se em crônicas sobre histórias vividas de verdade ou apenas em nossas cabeças. 

Esperamos que aproveitem. São nossos pés que vão dar as letras pra vocês.

Passo a passo, os pés das peregrinas pedem passagem.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

NOTA DA BLOGUEIRA
A série “Pé Dá Letra” será composta por ao menos dez crônicas de viagem (pelo menos nesta primeira temporada), publicadas semanalmente, sempre às quartas-feiras, a partir de 6 de maio de 2018.