Arquivo por tag: crônica

Obituário

Carmen Cagno*

Abaixou o volume do rádio pra aguçar o ouvido. Eriçou-se – era mesmo. O ruído que vinha do quarto vizinho era sexo. Escandaloso, público, como se 10 da manhã fosse hora praquilo.

Tentou não escutar. Voltou ao rádio e à velha máquina de escrever que não aposentava de teimoso. Os obituários daquele dia… com prazo do jornal até às seis.

Fingiu que não escutava. Encompridou o olhar pra fora da janela, em direção ao minúsculo terraço que dava para o largo. O gradil enferrujado, torto pelo tempo, já emoldurara um dia a fachada art-noveau delicadamente encimada por pequenas e elegantes cornijas. Há muito tempo. Quando o bairro era elegante; quando ele acreditava e a noite acolhia Cadillacs “rabo de peixe” embalando casais encantados pelo cenário trazido lá de Hollywood nas telas do cinema da esquina.

Ele acompanhara aquela paisagem, anos a fio, com o nariz de menino sozinho grudado na janela de vidro embaçado. Homens de chapéu e mulheres bonitas entravam e saiam dos restaurantes e do grande teatro iluminado. Ele imaginando histórias, sonhando, triturando um frio na barriga cheia de adivinhações.

A rua agora era só um arremedo, uma lembrança noturna, derramando a luz amarelada sobre traficantes e prostitutas. Calçadas de silêncio decadente, interrompido às vezes pela sirene da polícia ou os rugidos de uma gangue qualquer.

As samambaias que a mãe insistia, tentavam sobreviver ressequidas naquele território estéril. As samambaias mortas, obstinadas; a mãe obstinada, imortal nos reumatismos, na tossinha irritante, na gororoba que ainda mexia no fogão encarquilhado, todo santo dia, depois de pendurar aqueles panos encardidos no varalzinho improvisado do banheiro.

Da infância, “só-sobrara” o apartamento fincado nesta rua torta e insalubre; sobrara a mãe de nariz cada vez mais adunco. Uma vida impossível, fora do script, amarelada pelo tempo, insistindo naquele cubículo.

Ainda assim olhava pela janela. E fumava, suando no peito sem camisa.

Os mortos. Publicá-los toda manhã, pra alguém ler e comentar “ah, ele era tão bom”, “puxa, ela ainda estava viva?”. Os mortos nas duas colunas que lhe cabiam diariamente no jornalzinho sem-vergonha, emporcalhado de reclames de elixires milagrosos e garotos de programa. Passava no IML, pegava BOs na delegacia, conhecia os informantes do tráfico – o suficiente pra encher as duas colunas e ganhar aquela merda de salário.

Tratou, como já havia aprendido, de se desencantar das lembranças. Fincou os pés no chão ladrilhado e ouviu outra vez. Os dois ali do lado continuavam naquela indecência fora de hora, cheios de espasmos e fluidos. O barulho seco da cama, nhéc, nhéc, nhéc.

Os mortos assombrados com aquela energia tão descabida. Desrespeito, meu Deus; sem-vergonhice das grandes. A vizinha bunduda que cantava boleros feito um rouxinol e se balançava toda no tanque da área de serviço. Ele via, volta e meia. Era ela, a gostosa, só podia ser. Dando pra algum desocupado e ainda gemendo alto.

Depois, a gaveta da cômoda, o revólver do pai, carregado para as eventualidades. Saiu de chinelo mesmo, calção. Abriu a porta do lado e descarregou: uma, duas, três vezes.

Agora podia trabalhar.


Carmen Cagno é jornalista

Mais uma semana no país do passado

Estou me sentindo meio Regina Duarte, o que é horrível. Não, na verdade não é bem Regina Duarte. Porque ela tinha tantas coisas bonitas para falar. E eu não tenho. Ou até tenho. Começou a primavera e não foi sem alegria que percebi que a Terra, mesmo plana, continua girando e as flores entendem que uma estação nova começou. A luz do sol incidiu no gramado, um passarinho veio procurar o resto do meu lanche, uma árvore cujo nome desconheço amanheceu com a copa roxa e eu vi beleza em tudo isso. Vi. Eu juro. E até suspirei. Vi meu filho desligar a tela e andar de bicicleta. Suspirei também. E quase chorei.

Mas tudo isso não basta. Não tem bastado. As mortes ainda são muitas. Milhares. Teve o sete de setembro e o vírus CDF nem ligou para o feriado e foi trabalhar, que coisa! E nem só de COVID se morre nesse país. Os jovens negros nas periferias, por exemplo, continuam morrendo. A última estatística que temos é de 1 morte a cada 23 minutos. Não escrevi errado. Mi-nu-tos. E teve onça pintada nos olhando pelas telas com o olhar de quem morre aos poucos e sem amparo. Porque é assim que se morre no Brasil. Teve céu amarelo de tanto fogo. E aldeias queimadas e indígenas sem ter para onde ir (do pouco que já lhes resta) e parece que essas mortes vão grudando na pele e me pesando e me impedindo o sono e o descanso e a paz e a higiene e a vontade de sair da cama de manhã. Tudo tão seco que nem chorar mais tenho conseguido.

A internet por aqui também continua funcionando, ou melhor, quase sempre, o que é uma coisa boa também em época de isolamento, não? Apesar de que essa semana liguei quase chorando para o suporte da escola das crianças. Porque teve hacker-hater invadindo a aula das crianças. Sim, teve. E tivemos que mudar todos os acessos das crianças e na minha cabeça já não entra mais informação nova e sobrou para o rapaz do suporte que não sabia se me orientava ou me consolava.

E soube de mais invasões em congressos e aulas e seminários e palestras. Xingam as feministas. Xingam quem fala contra o racismo. Xingam quem se preocupa com a situação das pessoas encarceradas. Xingam quem luta contra a violência contra a mulher. Ah, é. Porque isso também não só continua acontecendo como também piorou. Mas xinga-se. Não basta não se preocupar com essas causas. Não basta querer que tudo continue como está ou sempre foi. É preciso ainda impedir que se lute contra toda essa violência. E impedir com mais violência. E não há ficção que resolva porque a boa ficção é boa justamente porque não é alienante. Por isso também o medo dela. Xinga-se quem defende o direito à leitura de literatura. Acaba-se com os programas existentes. Houve até reescrita de histórias para crianças. Porque agora tudo deve ser edificante na literatura. O país, que já era um grande cemitério, tornou-se também um crematório. Mas a literatura, veja bem, não pode mostrar as maldades. Somos tratados como grandes estúpidos incapazes de associar fome com bolacha.

É… eu até queria falar de coisas bonitas. Quem não queria, não é, Regina? Mas se os olhos estão abertos e se há ainda alguma ética, não dá para silenciar. Posso ser ficcionista, mas não sou uma mentirosa ardilosa, o que também teve esta semana.

‘F’ de festa

Amo festa. Música, dança, bebida para quem quiser, gente mexendo o corpo, sedução, descanso para as preocupações. Tanta gente fala isso agora: quando sairmos da pandemia, a primeira coisa que vou fazer vai ser uma festa. Eu também tenho dito isso. Comemorar meu aniversário. Comemorar todos os aniversários passados em isolamento. Comemorar a vida, os amigos. Comemorar nada. Só viver em liberdade e suspensão por algumas horas. Dançar até suar tanto que parece mais que saí de uma aula de spinning (eu ia escrever aeróbica, o que mostra minha idade – não quero mentir). Trocar um olhar. Fechar os olhos e soltar a imaginação. Fazer várias festas para as várias turmas. Fazer uma festa para misturar as turmas. Dançar sozinha ou agarrada a alguém. Se entregar ao que foi taxado de ridículo pelos recalcados. Meus filhos, que me chamam de ridícula quando danço sozinha em casa, me perguntaram do que mais sinto falta na pandemia. Do bar e das festas com os amigos, foi a resposta.  Amo uma mesa de bar também. Agora só quero sair para festas e bares. O resto vou fazer de casa mesmo.

Nesse sol de inverno tenho pensado mais em Paraty. Na festa literária brasileira mais famosa, mesmo com todas as críticas. Mas até Cristina, em Minas Gerais, foi uma festa. Porque veja bem: não falo de feira. Eu falo de festa. Na festa do meu sonho, nessa semana, tinha sol de inverno e ruas de pedras. E ladeiras. Talvez Salvador. Talvez Ouro Preto. Talvez não precise localizar a cidade no sonho. Pensar menos e sentir mais. Tinha gente, tanta gente nas ruas, nos restaurantes, nas lanchonetes, nos bares. Tinha um escritor que eu queria beijar com um bebê no colo. E teve um beijo bom demais trocado em uma festa. Um moço tão lindo, com a boca descrita pela Jacqueline Woodson no livro “Um outro Brooklyn”. Um moço que tocava uma guitarra triangular, preta e brilhante, como a pele dele. Antes de ele subir no palco, antes de nos beijarmos, eu tirei a poeira da guitarra, com um pano macio ao toque. Toda a gente, como escrevem os portugueses, dançava e dançava muito. Toda a gente ria.

Queria passar um ano em festas literárias. Fazer um calendário para acompanhar todas. Andar pelas ruas cheias de pessoas com o amor pela literatura em comum. Pessoas com livros nas mãos, debaixo do braço, nas filas de autógrafos, trocando dicas de leitura, falando mal disso e bem daquilo. Ou vice-versa. E pessoas nas mesas de bares. E à noite nos espaços transformados em pistas de dança. Dançar até não sabermos quem somos. Queria um Woodstock literário, uma festa à la Tim Maia, vale tudo, e vale até mais, porque vale homem com homem e mulher com mulher, vale o que a gente quiser. Por uma noite que seja. A literatura tem me sustentado, mas eu preciso de festa.

 

Baile de máscaras planetário

Agora, COVID-isolada, com todo o tempo do mundo liberado, escuto em mim um eco fundo, ‘Clariciano’

Évanes Pache*

Antes do convite para o baile de máscaras planetário eu pensava que o bem mais precioso que o ser humano podia ter se chamava Tempo. A vida se dava em aceleração constante.

Fiquei maravilhada com as reflexões que um filme de ficção científica, estrelado por Justin Timberlake, me provocou. Num futuro próximo, as personagens trabalham em fábricas e, todos os dias, ao final do expediente, passam num guichê para receber seu pagamento. O seu salário é pago em tempo. Sim, tempo. Naquela fatia de realidade, as pessoas trabalham por tempo de vida. Essa é a moeda de troca em “O Preço do Amanhã” (In Time, 2011). É com o tempo que se paga comida, transporte público e todo o necessário para viver.

O filme é muito interessante e não quero dar (mais) spoiler, mas dá pra imaginar o que acontece se a pessoa para de trabalhar, não?

“O Preço do Amanhã” é, pra mim, uma releitura do mundo pré-baile de máscaras. Até fevereiro de 2020, vivíamos e trabalhávamos numa velocidade cada vez maior e, por outro lado, no subtexto, estava a angústia de atingir o tempo livre, sonhando com o final de semana, com o próximo feriado, com as próximas férias.

Hoje, com a COVID-Fest a pleno vapor e mascarados disputando pela versão mais mask fashion no baile planetário (um comportamento resquício do mundo pré COVID), o tal do tempo deu um cavalo de pau e se atravessou na avenida. Tudo virou de cabeça pra baixo no LP “Terra Plana”. Podia apenas ser a maravilhosa “Terra”, de Caetano (já que estão querendo voltar no tempo), mas não. Agora, estamos ouvindo o Lado B do mundo e de cada um de nós também. No Brasil, o Lado B roda em 78 rotações e em algumas bocas canta “todo mundo, vamos, pra frente Brasil…” (né Regina?).

Tenho pensado nas projeções de cientistas e informações de profissionais da saúde, nas notícias que chegam diariamente e no comportamento inexplicável de tantas pessoas que tenho visto – estupefata – todos os dias. Olhando em perspectiva, o quadro pintado não é bonito. ‘#EleNão’ tem 50 tons de cinza. “#Elenão” e seus seguidores gozam com a pulsão de morte descrita por Freud.

Ahhhhh, mas eu vou colorir com o Azul que é a cor mais quente. Pra começar, vou jogar aquele azul bem Frida misturado a um rosa bem Liniker. Depois eu penso no resto.

Nos primeiros dias ficamos meio perdidos com tanto tempo, à deriva. Pensei muito em Clarice ao refletir sobre tempo e liberdade. Apliquei Clarice em minhas inquietações. Antes das máscaras era um tal de “liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”. Eu tinha fome (tenho) de mundo e queria (quero) tempo pra explorar inúmeros lugares. Agora, COVID-isolada, com todo o tempo do mundo liberado, escuto em mim um eco fundo, ‘Clariciano’, que diz: “eu e minha liberdade que não sei usar“.

Das reflexões, um pensamento urgente incomoda/mente. “É preciso amar como se não houvesse amanhã”. Tô pensando aqui que, sem poder frequentar a academia que cuida do físico, talvez seja interessante inventar em nós a academia da alma e exercitar todos os dias os músculos da compaixão, solidariedade e empatia. Na minha perspectiva, esses são os nossos maiores ativos.

Quem sabe, ao desfilar essas atitudes nas redes, nas videochamadas, lives, textos, mais gente perceba que o discurso bélico/presidente da Ustra direita, está mais que demodé. Está ultrapassado, brega, oldfashion nas velhas prateleiras ditatoriais do Brasil do século passado.

Então, meu caro amigo, me perdoe, por favor”, se agora eu deixo essa pergunta:

“O que você faria se só te restasse esse dia?”

 

P.S.: hoje, eu apenas gostaria de fazer poesia e declarações de amor. Enquanto isso, no meu baile pessoal, me prometo fazer tudo o que mais gosto. #Ficaremcasa, falar, me declarar a amigos queridos, cozinhar coisas que me dão prazer ouvindo jazz e tomando um bom vinho. Vou continuar a sonhar, amar, me renovar, revelar. Quero dizer do meu amor e me despir do que ainda pode restar em mim de ustra-passado. Sim, porque todos nós temos sombras de estimação a dar conta. Eu tenho esse figurino mas escolho deixá-lo no armário enquanto vivo livre.

Em tempo…all we need is love” and respect for all sort of life.

 

Évanes Pache é jornalista e especialista em Transformação de Conflitos e Estudos de Paz

Crônica da seção Palavreiros, do blog, que traz colaborações de convidados com temas livres. O convite é extensivo a todos que gostam de “palavrear” a vida na forma escrita.

Playlist

“Sem motivo vou vivendo por aí por viver
Meus valores tão confusos reprimidos por você
Troco passos sem sentido pelas ruas
sem saber aonde ir”

Escrevo com o humor encantado, esparramado na rede imaginária dessa música do Roberto Carlos na voz do Nando Reis, que fez o favor de fazer um álbum inteiro dedicado à obra do “Rei” (“Não sou nenhum Roberto mas às vezes chego perto”). Já amo o Roberto desde criancinha, mas achei de uma covardia varonil juntar ele com uma de minhas paixões musicais de adulta.

E o Nando canta “Vivendo por Viver” com lágrima escondida na voz de veludo, demorando em pausas, com um violino criminoso chorando ao fundo. Só pra ferrar de vez meu coração, já afundado até a última artéria na melancolia alucinógena que certos sons acordam em mim.

Passamos, eu e o Márcio, partes da tarde e noite de ontem hipnotizados por essa descoberta, feita ao acaso, enquanto percorríamos vídeos musicais no youtube – os dois buscando, desesperadamente, desintoxicação dos humores doloridos de ver tanta notícia de morte lado a lado com as de politicagem, ódio e descaso explícito neste tempos de covid-19.

E o Má tirou a música no violão só de ouvir. Nem pediu pra eu pegar cifra na internet. Igual quando viu a Adriana Calcanhotto cantando “Vambora” na live do Sesc, semana passada – sabe que minha voz dá certinho pro tom dela e que adoro!

Entre por esta porta agora/ Você tem meia hora/ pra mudar a minha vida”.

Antes disso, playlist encantada com canções de Marisa Monte, que deve ter roubado a voz de algum anjo, porque… Jesus!… como pode alcançar regiões tão escondidas do ouvido da gente! Ela toda classuda e senhora do palco e da plateia, dando um ar de haute-couture a uns modelitos que em qualquer outro mortal ficariam cafonas… e transformando umas letras quase bobinhas em músicas de transcender com aquela voz… ai! Se eu não fosse eu mesma nesta vida, a única pessoa que ia querer ser seria a Marisa!

Na varanda quem descansa / Vê o horizonte deitar no chão/ Pra acalmar o coração/ Lá o mundo tem razão

E ela cantando com o tremendão, fazendo eu me perguntar por que não ouço tanto “Mais um na Multidão”, dela com o Erasmo e o Brown (“Você pensa em mim, e eu penso em você/ Eu tento dormir, você tenta esquecer/ Longe do seu ninho, meu andar caminho”). E lembro que a Marisa ainda canta Roberto (“De que vale tudo isso se você não está aqui”).

E o Roberto, aliás, vou falar, viu! Vai construir fossa gostosa de sentir assim na Indochina! Quase lamento ele ter parado de sofrer na década de 1990, quando passou a compor umas letras menores – pra gordinha, baixinha, caminhoneiro (afff!).

Pensava nisso quando entrou de surpresa “Veja (Margarida)”, do Geraldo Azevedo, que o Marcelo Jeneci regravou pra novela “Velho Chico” e estava na sequência da playlist do meu Apple Music (Veja você, arco-íris já mudou de cor/ E uma rosa nunca mais desabrochou/ Com esse gosto de sabão na boca). Uma singeleza de ouvir rezando!

E deixa estar que o Geraldo Azevedo também tem umas músicas de arrepiar! Vou nele daqui a pouco, mas, por ora, acho que vou colocar “Vivendo por viver” no repeat (de novo) pra estremecer mais um pouquinho de fossa – que, verdade seja dita, só é gostosa de sentir quando a gente não está sofrendo de verdade por amor.

Parece que hoje o universo todo está mancomunado – ou, talvez, seja a tal da física quântica – pra que todos os sons mais lindos venham salvar a gente de sucumbir à tralha asfixiante desse todo-dia-de-quarentena-da-covid-19-sem-emprego-e-trabalho-free-lancer.

Graças a Deus pela música!

Amém, senhor.

Os anos, os meses e os dias

Foi Dia das Mães.

Geralmente, nessas datas comerciais comemorativas que nós condenamos por serem comerciais, mas que aproveitamos para comemorar porque gostamos de símbolos e, bem, não resistimos aos apelos comerciais, nós escrevemos com antecedência sobre elas. Ou no dia da comemoração. Mas é que continuamos com os números indecentes da pandemia e seguimos para o terceiro mês de isolamento, de forma que só me lembrei do Dia das Mães no domingo em que se comemora o Dia das Mães. E só me lembrei porque mensagens com fotos de flores começaram a chegar pelo Whatsapp, o que me fez chamar meus filhos e dizer ei, hoje é Dia das Mães, coloquei a mesa do café, mas não vou tirá-la, nem vou fazer almoço, muito menos o jantar, e quero massagem nos pés, o que foi recebido com algumas gargalhadas. Não ganhei nenhum desses presentes. Mas mãe é essa coisa mole, que derrete feito a manteiga que passa no pão quando vê um bigode do leite que ela esquentou no rosto do filho.

Já são muitas as manhãs em que abro os olhos, quase sempre depois de ter passado horas na madrugada com eles abertos, e me pergunto em que mês estamos. Já entramos em abril? Então me lembro que sim, também teve um domingo de Páscoa que esqueci, um domingo de Páscoa sem ovos de chocolate para as crianças, que descobriram que ovos de chocolate não são itens essenciais, o que me fez lembrar de ter cozinhado carne vermelha na Sexta-feira Santa. Apesar de não ser cristã e muito menos católica, passei a vida comendo peixe nesse dia. A culpa sempre me caiu muito bem.

E teve o aniversário do meu pai. Sim, teve, puxo na memória. Papai fez setenta e cinco, o que me lembra que farei quarenta e cinco, e teve “parabéns” virtual, então sim, já entramos em abril. E já entramos em maio, mês do meu aniversário, que também deverá ter um “parabéns” virtual. E em algumas manhãs até me localizo no mês, mas tenho dificuldade com os dias. Passo a quarta achando que é quinta ou a quinta achando que é quarta. Não bastasse a falta de dinheiro, atrapalho-me também com os vencimentos das contas. Mas já é dia 10? O quê, já passou o dia 15? E pode ficar muito difícil respirar. Mas há a literatura, penso. E escolho uma escritora ou escritor para me acalmar.

Nessa semana foi Annie Ernaux, com o livro “Os Anos”. Eu sabia que tinha algo de muito especial ali. Abro o livro com carinho e aspiro fundo a primeira frase:

Todas as imagens vão desaparecer.

Tem muita imagem bonita que vai desaparecer. Mas as feias e cruéis também irão. Pode demorar muito, mas a Annie está certa, todas as imagens irão desaparecer. Dói. Mas também alivia.

Viva a literatura!

Mais perto da lua

Noite dessas fui abduzida para outro planeta. Justo eu, que nunca gostei de histórias de viagens interplanetárias, realidade paralela, catástrofes e coisas assim. Só via o céu quando passava noites no mato e, sem mais o que fazer, me deitava olhando a lua, a via Láctea, o Cruzeiro do Sul, a estrela Dalva e milhares de estrelas… Aí pensava em como seria morar em uma delas ou no planeta vermelho.

Agora isso: abro os olhos, ando pelo apartamento. Tudo parece igual, mas está diferente. Os extraterrestres reproduziram meu habitat como fazemos nos zoológicos, mas foram além, porque todo o meu entorno é o mesmo e minha mãe continua morando no mesmo lugar.

Só que estou enjaulada. Daqui não posso sair. Segundo me informaram por uma tela onde os ETs surgem cheios de cena, posso quebrar a regra da quarentena que me impuseram por causa de um invasor, mas arcarei com as consequências. E porque não posso sair, não vejo outras pessoas a não ser meu marido, que foi abduzido junto.

Temo e aprendo. Faço ginástica, cozinho com os suprimentos que me deixaram e há uma ordem de que tenho que manter 1 metro distância de quem quer que eu eventualmente cruze, se me rebelar.

Aprendo e temo. Não sei como viverei igual a antes disso se tenho aprendido a viver de outro jeito. Também não sei quando me devolverão para a Terra, se ela ainda será a mesma e nem mesmo se existirá. O mais grave: não sei se quero ser devolvida.

Estou gostando de ficar aqui, tirando as ameaças e os perigos do lugar. Consigo manter contato virtual com as pessoas que amo, rezo, mas não preciso trabalhar fora, cumprir compromissos sociais, encontrar os conhecidos sem afinidade comigo, experimentar a comida do restaurante novo, ser medida dos pés à cabeça. Vivo. Não preciso ir a cabeleireiro, terapeuta, shopping, massagista, cardiologista, contador. Não preciso ir ao banco.

E tudo se adapta. Cortam-se os excessos, tiram-se as influências. Neste planeta eu ouço menos barulho. Sempre gostei de silêncio.

Restringiram-me. Não posso mais bater perna. Viajar não pode. Nem abraçar, o que é ruim, mas por outro lado é bom porque dá mais vontade e encontram-se outros caminhos. A rigor, nem falar sozinha é permitido, pois gotículas de minha saliva ficarão no ar e isso é ruim para quem vem depois.

Tudo isso tem me deixado calma. Posso estudar uma porção de coisas que sempre quis sem ter pressa e faço isso pelo celular, que mantiveram e tem ótima conexão interestelar.

Devo fazer tudo devagar para que o tempo passe. E o tempo passa.

Durmo bem, rio, ouço músicas. Parece que estou voltando a ser criança.

Aliás, quando eu era menina, cismei de descobrir qual era a distância entre a Terra e a Lua. Passava tardes sentada no jardim tentando resolver esse problema.

Um dia, olhando uma figura da Terra e da Lua, tive a ideia: medi o diâmetro da Lua com a régua da escola. Digamos que tenha dado 1 centímetro. Medi a distância entre ela e a Terra. Digamos que tenha dado 5 centímetros.  E concluí que eu estava a 5 luas de distância da Lua.

Agora eu poderia calcular quanto tempo levaria para ir de caminhão até lá. E depois teria de descobrir por qual estrada.

Só porque estou abduzida nessa réplica do meu território, e com tempo, pude lembrar do meu sonho infantil de querer morar na Lua. Lá eu estaria mais perto daquilo que me faltava e eu nem sabia o que era. Nem sei ainda, mas estou com mais esperança do que nunca.

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

Homeoffice

por Luciana Gerbovic

Hoje amanheci (já que não dormi) decidida a encerrar umas pendências do trabalho. Tudo ajeitado na minha mesa do “homeoffice”, que é a mesa de jantar mesmo, mas antes o café da manhã das crianças. Suco de laranja espremida na hora, ovo mexido, fruta, entuchando o que posso de bom e saudável nesses meninos.

Depois é colocá-los pra tirarem o pijama (por que, mãe, se ninguém sai de casa?), escovarem os dentes (por que, mãe,…), o cabelo (faz o que tô mandando e não pergunta) e finalmente ajeitar o material para as lições que a escola ia começar a mandar hoje. Mas tem que entrar no Googleclassroom e colocar os códigos. Tem que criar um e-mail pro mais velho e explicar pro mais novo que ele não terá esse esquema porque ele está no Fundamental I. Tem que se inteirar do esquema do Fundamental I. E tem que descobrir que o filho mais velho não acha mesmo o livro de Matemática e descobrir que o livro ficou na escola, e dar um jeito do livro voltar pra casa, mas aí já é hora do almoço e tem que ter legumes e verduras e peixe e comida fresca e depois do almoço pronto e da louça lavada tem o livro de Matemática que chegou e aí o filho pode começar a lição, mas ele está quase tão perdido quanto o Você Sabe Quem na presidência e resolvo sentar com ele, com todo o trauma que tenho das lições de Matemática, com toda a falta de paciência que tenho pra menino cheio de privilégio que não entendeu como deve se portar na escola e cuidar das coisas, mas sento e me encho do amor que sinto por ele e supervisiono a lição de expressões numéricas e acolho os erros e as dúvidas e o desleixo para transformá-los em desafios superados. E a lição fica tão caprichada que ele acha que o professor vai desconfiar que nem foi ele que fez.

E eu choro porque hoje à tarde eu deveria estar com meus alunos da Escrevedeira falando de literatura. E meus filhos me abraçam dizendo que logo estarei com eles. Enxugo as lágrimas e já é hora da janta. E tudo fresco de novo. Faço arroz e fica bom! E sirvo o jantar e enquanto o marido lava a louça e comenta que pelo WhatsApp os amigos acham que devia ter aplausos nas janelas para os maridos que estão em casa, eu berro em nome da luta feminista e digo que não vou jogar biscrok pra macho que tá fazendo o mínimo do mínimo do que poderia fazer e guardo a louça e coloco as crianças no banho e rezo pra virar lésbica depois que esse isolamento acabar porque de homem hétero já estou pelas tampas das panelas que eles não sabem onde ficam.

E faço um bate-papo virtual com as manas inteligentes da porra antes de regar as plantas. E tomo um banho e penso nas mulheres que não têm os meus privilégios, nos alunos que não têm os privilégios dos meus filhos, no trabalho doméstico que deveria ser remunerado e muito bem remunerado. E choro. E saio do banho e acho que mereço esticar as pernas no sofá.

Quase 23:00. E porra!, os trabalhos pendentes que assim continuaram, lá no meu “homeoffice”…

Cinco centímetros

Meu mundo encolheu.

Ficou pequeno de repente ou será que está assim faz tempo e só me dei conta agora? Neste exato momento em que escrevo ele tem o tamanho do primeiro salto fino de 5 centímetros que coloco em quase dois anos.

Sei que ele tomou esta dimensão porque, pelos cerca de 200 metros caminhados entre o estacionamento de veículos e minha mesa de trabalho, equilibrar-me sobre aqueles finos 5 cm tornou-se o propósito da minha vida.

Não tinha me dado conta disso até chegar arfando ao destino.

“Correu Silvia?” – perguntou minha colega de trabalho ante meu descontrole respiratório.

“Quem me dera”. Andei foi bem devagarinho, cuidando de cada passo, esquadrinhando cada centímetro quadrado de piso antes de depositar sobre ele meu equilíbrio vacilante de acidentada.

Arfava era de algum tipo de emoção que não sei se consigo explicar… uma melancolia de finitude, como uma nostalgia de um sonho que, realizado, não parecia mais tão… sonho.

Talvez porque foi ali que me dei conta do tamaninho do meu mundo.

Lembrei-me do Du e da Clara, que acabaram de vender tudo o que tinham no Brasil para mudar-se de vez para a Espanha (isto sim de tirar o fôlego)… do querido Marcelo, vivendo há 20 anos em Londres a administrar saudades que mata por 30 dias ao ano… de minhas amigas, que já trilharam o Caminho de Santiago de Compostela e a Via Francígena, na Europa, e agora fazem planos de uma viagem ao Chile.

E eu limitando os meus a conseguir equilibrar-me sobre um salto fino de mulher.

Agora entendo o frio na barriga sentido quando me convidaram pra tal viagem: estava tão quentinho ali, encolhidinha que estava dentro de meus “não-planos” (aqueles que se faz quando não se tem plano algum) de voltar a usar salto ou decidir se poupo para trocar de carro ou faço reserva para um hipotético futuro desemprego!

Quando foi que fiquei tão pequenininha?

Será que consigo crescer de novo?

Barriguinha, prepare-se! Acho que vou levá-la (com frio e tudo) ao Chile.

 

* Publicada no jornal A Cidade em 15/2/2018

Vício inerente

REGIS MARTINS

Chet Baker was a gifted trumpeter and jazz icon.

Estava eu pensando sobre o que escrever para os leitores do Palavreira, quando dia desses assisti a um filme baseado na vida do trumpetista Chet Baker (1929-1988), com o Ethan Hawke no papel principal. O título é muito bom – “Born to Be Blue” – nome de uma das canções mais famosas do jazzista, mas o longa em si não tem nada de excepcional. Apenas correto.

O fato é que Chet era um talento raro e, galã, foi considerado o James Dean do jazz. Tinha o mundo aos seus pés, porém, era um junkie inveterado e deixou um rastro de destruição por causa do vício.

Todo mundo tenta ajudar o cara, mas é um caso perdido. Na verdade, o que me chama a atenção nisso tudo, e até me assusta, é o tipo de autoconsciência de certos viciados.

São pessoas carismáticas e inteligentes que, conhecendo bem sua natureza, sabem que não vão sobreviver sem a droga. E vão se autodestruindo lentamente, numa grande valsa do adeus.

No começo do filme, sua namorada quer saber o motivo de um cara como ele se tornar um viciado. “Problema com os pais?”, ela pergunta.

“Não, nada disso”, responde Chet/Hawke e emenda: “É porque eu gosto de ficar doidão”.

Bom, essa é basicamente a resposta para um grande enigma do universo. As pessoas se drogam/fumam/bebem/comem/apostam em excessos porque gostam. A compulsão é uma velha amiga nossa.

A questão é: qual o limite?

Nos filmes “Ninfomaníaca 1 e 2” do dinamarquês Lars Von Trier, o diretor usa o sexo para tratar desse tema espinhoso que é o vício. Em dado momento, a personagem principal, Joe, vai participar de uma terapia em grupo e, de repente, se dá conta de que aquilo tudo não vai ajudá-la em nada. Simplesmente porque o vício faz parte de sua natureza. A busca pela cura era como uma negação de si própria. No final das contas, Joe aceita sua situação, a “fratura” que compõe sua alma, consciente de suas consequências.

Chet tinha consciência também, e pagou caro por isso. Devastado pelas drogas, morreu sozinho em Amsterdã, aos 58 anos, depois de “despencar” da janela de seu apartamento.

Reconhecer nossos demônios é um grande passo. Sobreviver a eles são outros quinhentos. E segue o barco!

 

(*) Regis Martins
Jornalista, músico, pai da Marina, avô da Helena e ‘palavreiro’
cultural de mão cheia


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!’