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A memória de velhas crianças

GUILHERME NALI *

A vida do ser humano, se colocada em um plano cartesiano, seria assim: a linha sairia lá de baixo e iria aumentando até chegar ao ponto máximo. Depois entraria em decadência pura. Biologicamente é o ciclo natural da vida. A gente nasce, cresce, se reproduz e morre. Inevitável. Mas existe uma única coisa no mundo capaz de quebrar esse determinismo. A memória.

Há alguns anos tenho pesquisado muito sobre a memória coletiva ao redor de um acontecimento do passado. Um dos temas foi a Revolução de 1932, em Cássia dos Coqueiros – MG. Para entender o que esse evento histórico significou para aquela população fui atrás das testemunhas oculares da época. Descobri um universo de poucos senhores e senhoras de idade avançada, que eram crianças quando as tropas chegaram à pacata cidade.

Eu sabia exatamente o que perguntar a eles, para levantar meus dados. Mas uma dúvida parecia não ter resposta certa: Como eles se lembrariam de algo que aconteceu há mais de 80 anos? O resultado foi surpreendente.

Por se tratar de um acontecimento traumático para a cidade e principalmente para as crianças, que mal entendiam o que estava acontecendo – muitas famílias fugiram de suas casas com medo de tiroteio no meio da noite -, muitas imagens ficaram gravadas na memória. Mas carregadas de sentimentos do universo infantil.

“Eu passava a noite embaixo da cama. A gente ouvia o zunido das balas lá fora assim: zum, zum, zum”, declarou um dos meus entrevistados. Essa fala, cheia de onomatopeias, é característica das crianças, mas está na boca de um senhor de 90 anos. O passar dos anos, claro, trouxe o sentido que eles não entendiam sobre a revolução, mas a memória permaneceu como foi percebida na época.

Por serem os únicos a ter “legitimidade” de contar a história, todos trazem consigo um sentimento de orgulho.


“Por serem os únicos a ter ‘legitimidade’ de contar a história,
todos trazem consigo um sentimento de orgulho”


Principalmente por terem participado, de certa maneira, de um evento importante do país, do Estado – mesmo que SP tenha perdido a guerra.

A memória, carregada de sentimentos, mesmo que a escala da vida do sujeito já esteja em queda, sempre nos remete ao ponto máximo da nossa história. Assim nos tornamos importantes, imprescindíveis, eternos.

Esse é o sentimento que vou levar dos meus velhinhos, quando eles se forem. Meu avô já não pode andar mais, mas mantém a lucidez e a ternura de sempre. Minhas avós também têm lá suas limitações de saúde. Mas são puro amor, quando estão com os filhos e os netos.

Sempre que posso, peço que eles me contem uma história do passado, de quando estavam fortes, saudáveis, produtivos. E instantaneamente, pelo menos por alguns segundos, todas as dores da vida passam e são substituídas por um sentimento de glória.

Quanto mais histórias de vida nós pudermos contar e ouvir, mais chances temos de admirar o ser humano, principalmente os idosos, tão importantes na nossa vida. Essa é minha maneira de manter nossas velhas crianças vivas pra sempre.

 

* Guilherme Nali
Jornalista, editor e apresentador do
Bom Dia Cidade e Jornal da EPTV


 

 

 

 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!

 

O Testamento

Quando Teresa Maia morreu, afetada por uma dor no peito, os parentes, ainda no velório, começaram a pensar nos bens que ela poderia ter deixado. Viúva, mãe de quatro filhos, Teresa tinha um modo de vida confortável, amparado pela aposentadoria deixada pelo marido, engenheiro de uma grande empreiteira, e pelos trabalhos de pintura em porcelanas para uma loja de louças finas, uma arte cultivada desde a mocidade. Sempre que os filhos precisavam – e precisavam cada vez mais – estava pronta para assinar um cheque. Pouco sabiam sobre sua vida. Apenas que nunca votara em partido de esquerda, ao contrário deles, defensores ferrenhos de programas sociais. Nunca perguntaram sobre sua vida, sua história, seus anseios. Mas… quem sabe sobre a vida dos pais? Como se conheceram, onde nasceram? A história dos pais pouco interessa aos filhos, netos e afins.

Teresa Maia era uma mulher bonita. O tempo não causara muitos danos ao seu corpo. E ali, de mãos cruzadas sobre o peito, livre de estresse, deitada para sempre em um leito que não escolhera, estava mais jovem que seus 60 anos poderiam aparentar. Parecia segurar um leve sorriso, um tanto sarcástico. Conversa vai, conversa vem, os filhos souberam que ela havia deixado um testamento.

Um testamento? Teria ela acumulado bens sem que soubéssemos? – perguntaram- se os filhos. E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um. O mais novo, anteviu suas dívidas amortecidas, quem sabe saldadas, a compra de um carro novo e uma viagem ao Havaí, seu sonho de adolescente. Os outros também faziam planos mentalmente enquanto olhavam o rosto inerte da mãe, como se a pedir desculpas pelos pensamentos torpes àquela hora tão triste.


“E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um”


Tudo acabado, voltaram para casa à espera de um chamado. Nada. Passaram-se os dias e resolveram entrar em contato com o advogado que, solícito, desculpou-se pelo atraso e foi logo marcando o encontro em seu escritório.

Aquela era a hora mais esperada. Todos sentados, bem vestidos como pede a ocasião, aparentavam um ar blasé, como se nada de material lhes interessasse, como se a saudade da mãe embotasse qualquer resquício de pensamento materialista. Em segredo, a passagem para o Havaí com uma esticada por outras ilhas exóticas já estava até reservada, e nas outras cabeças amorosas os planos já tomavam formas exatas.

E veio a leitura. Silêncio que a hora é sagrada. Primeiro, o extrato bancário de Teresa Maia, que fez engasgar todos os quatro de um vez: muito dinheiro. Depois, os imóveis. Outro susto.

Como ela pôde esconder tudo isso de nós? – pensaram ao mesmo tempo. Finalmente, o desfecho: “Meus filhos, sei que me amaram de todo o coração e sou grata a todos. Penso que dinheiro e bens não pagam o amor de ninguém. Mesmo assim, deixo para vocês quatro, 5% do meu patrimônio. Sei que não vão se importar, pois sempre os vi e ouvi defendendo ideias e pensamentos de esquerda, contrários ao capitalismo selvagem, esse que torna os seres humanos tão mesquinhos. Portanto, comunico que os outros 95% serão empregados em uma causa nobre, ou seja: para entidades beneficentes, cujos nomes estão com meu advogado. Ah, não se esqueçam de pagar pelos serviços dele e continuem com seus nobres ideais. Um beijo de sua amada mãe”.

PS: Façam bom proveito.”

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Tudo começou com um pescoção

ANA CÂNDIDA TOFETI DE OLIVEIRA *

Agosto de 1996. Sexta-feira de “pescoção” (plantão para fechar duas edições) na Folha de S.Paulo sucursal Ribeirão Preto. Eu ainda de luto pela morte repentina de um primo querido. Por volta de 22h, já havia fechado o jornal do dia, mas faltava o de domingo ainda. Os computadores, aqueles de tela preta com letra laranja, travaram. Perdi o artigo de um professor que deveria ser publicado na editoria opinião da edição dominical. Bom lembrar que neste ano a Internet era para poucos, só podia ser acessada no computador do editor-chefe e ainda era discada: lentidão total. Celular também era objeto de luxo.

Como achar o tal professor para mandar novamente (por fax) o texto ou me ditar pelo telefone, como havia feito anteriormente, se ele estava numa casa de praia que nem telefone fixo havia quanto mais sinal de celular? A solução era substituir por outro artigo assinado, mas como encontrar algum numa noite gelada de sexta-feira? Apelei para um professor que havia dado aulas com meus pais. Ele tinha um artigo inédito pronto e fez a caridade de me levar (impresso) até à redação para que eu pudesse digitar e publicar. Isso já era quase meia-noite. A primeira batalha estava vencida. Mas ainda faltavam duas matérias para fechar. Estavam apuradas, mas tinha que escrever e aguardar a edição. Assim o fiz. Sai da redação de madrugada e no outro dia às 8h começava o meu plantão.


“neste ano a Internet era para poucos, só podia ser acessada no computador do editor-chefe e ainda era discada: lentidão total. Celular também era objeto de luxo”


Chegando ao Jornal, comecei pela ronda policial e logo na primeira ligação fui informada do furto de um avião em uma propriedade rural da região. Apurei tudo por telefone porque a matéria ia render chamada na edição nacional. No meio da tarde, quando estava finalizando a matéria e acabando de apurar outras me veio uma crise de choro. Uma mistura de cansaço, com tristeza e a sensação de que não era isso que eu queria para minha vida.

Estava sentada, em frente ao computador, no canto da sala, e bem nessa hora o telefone toca. A pessoa do outro lado se identifica como Sílvia Pereira. Estava vendendo uma pauta (trabalhava na época como assessora de imprensa). A pauta não me lembro mais, mas o que ela me falou mudou o rumo da minha vida: inesquecível. Percebeu que eu estava chorando, que não estava bem emocionalmente. Mesmo sem me conhecer, se importou comigo e se colocou no meu lugar. Senti confiança e me desabafei com ela. Ao final ela me disse: “eu te entendo porque já passei por isso. Tenho um amigo que é diretor em uma revista mensal que está precisando de jornalista, você não quer tentar a vaga? Eu te passo os contatos. O salário não deve ser igual, mas o trabalho é mais calmo e você vai ter mais tempo de cuidar de você. Do jeito que está não vai aguentar mais muito tempo”.

Agradeci, anotei os contatos e no outro dia estava na Revista Revide para conversar com Murilo Pinheiro. Lembro direitinho do tom da conversa, das matérias dos jornais assinadas por mim que levei para que ele avaliasse. Gostou e disse que a vaga era minha, mas que tinha que começar na semana seguinte. No outro dia cheguei à redação da Folha e pedi demissão. Fiquei mais uma semana e meia para terminar os trabalhos e deixar algumas especiais prontas. O editor da época tentou me convencer a ficar, mas eu estava decidida. Ia casar no final do ano e naquele momento a outra proposta ia me trazer mais qualidade de vida. Já havia trabalhado em jornal Diário por seis anos em São Paulo e a maratona de plantões era algo que não cabia naquele momento para mim.


“Na Revide fiquei quatro anos, fiz muitas matérias boas,
conheci muita gente, fiz grandes amigos, que conservo até hoje”


Na Revide fiquei quatro anos, fiz muitas matérias boas, conheci muita gente, fiz grandes amigos, que conservo até hoje. Em 2000, surgiu a oportunidade de mudar para uma assessoria de imprensa: a Outras Palavras, que tinha três anos de existência. Era um desafio novo e resolvi arriscar. Menalton Braff havia acabado de receber o prêmio Jabuti pela editora Palavra Mágica e eu fui ajudar nesta divulgação. Outros clientes vieram até que tive a oportunidade de virar sócia da empresa e, desde 2015 assumi a administração sozinha, contando, claro, com excelente equipe de colaboradores.

Nunca mais ouvi falar da Sílvia e nem fiquei sabendo o paradeiro dela. Importante enfatizar que não existiam redes sociais na época. Eis que a Regina Oliveira, uma jornalista que havia trabalhado comigo na Revide e depois na Outras Palavras, foi convidada para ser repórter na Tribuna de Araraquara e quem era sua editora? Sílvia Pereira. Quando fiquei sabendo quis muito falar com ela para agradecer o que tinha feito por mim. Ela lembrou do fato, mas não imaginava o tanto que aquilo havia marcado minha vida. Depois de uns anos voltou para Ribeirão para assumir a editoria de Cultura do Jornal A Cidade e nos aproximamos de novo.

Ela, uma virginiana, eu, uma canceriana, que temos em comum o amor pelo jornalismo, pela literatura, pelos amigos, pela vida. E por coincidência ainda descobri que ela faz aniversário no mesmo dia da minha primogênita: 21 de setembro. Não tinha como não começar a minha participação em Palavreira sem contar este história que nos une e que, embora Cândida como eu, é especial e retrato um pouco do que era o jornalismo em Ribeirão na década de 1990.

Obrigada Sílvia e sucesso sempre.

 

Ana Cândida Tofeti de Oliveira
Jornalista com grande experiência e amiga querida!!!


 

 

 

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“VEM PALAVREAR COM A GENTE!”

 

 

NOTA DA BLOGUEIRA

Ana Cândida, querida, o que fiz foi pouquíssimo e o mérito é todo seu por ter conquistado a vaga. A recompensa de sua amizade é que é inestimável e muito mais do que mereço pelo episódio. Gratidão sinto eu por tanta generosidade de sua parte! Beijos carinhosos e cheios de admiração! Namastê.

 

Um certo tipo de solidão

Existe uma solidão que não é de falta de gente, mas de experenciar uma situação que ninguém pode compartilhar com você ou imaginar como é. É como olhar as pessoas em torno de si – mesmo as mais próximas – através de um vidro que nos separa do restante da humanidade.

Eu me senti assim durante uma crise de depressão, mas então existia uma grande dor a me desconectar até de mim mesma – não me reconhecia…  passei a desgostar de tudo o que costumava me dar prazer (música, leitura, cinema, parentes, amigos…).

Mas descobri que não existem só as solidões ruins.

Durante vários períodos de recuperação do acidente senti novamente este vidro me isolando de todos – até de quem eu dependia para as mais elementares necessidades, meus cuidadores. Mas então não havia “a grande dor”, só uma grande percepção, como um estado de alerta constante.

Acho que precisamos de vez em quando dessa solidão. Com ela passei a olhar com mais atenção para as coisas do cotidiano que fazia automaticamente antes e também para as pessoas.

Re-hierarquizei o valor de tudo.

Desenvolvi uma gratidão retardatária por tudo o que podia fazer antes – e fazia no piloto automático, sem dar grande importância -, como andar rápido, correr (não fazia muito, mas deveria), dançar (adoooooro), ir ao banheiro e tomar banhos sozinha, dirigir um carro para onde quisesse… olhar – mas olhar meeesmo! – os caminhos.


“Desenvolvi uma gratidão retardatária por tudo o que podia fazer
antes – e fazia no piloto automático, sem dar grande importância”


E me fazia feliz saber que aquela imobilidade não era definitiva, que, com tempo e esforço, eu voltaria a fazer tudo.

Havia, sim, dias em que acordava triste, com um sentimento de urgência de voltar ao mundo. Eu não os evitava. Vivenciava as tristezinhas pacientemente… esperava passar. Sabia que passariam.

Passavam!

Era fácil enquanto só tinha minha recuperação para me preocupar.

Mas será que conseguirei manter isso? É a questão que tem me vindo muito ultimamente, conforme se aproxima a data da volta ao trabalho e, com ela, todos os gatilhos das antigas ansiedades.

Procuro me abastecer de leituras para a alma… tudo o que me cai nas mãos para lembrar-me que podemos escolher como viver e que teremos sempre ajuda (se a pedirmos).

Por indicação da querida Solange Bataglion, comecei a ler “Todo Mundo Tem um Anjo da Guarda”, do médium católico (sim, católico!) Pedro Siqueira.

Desde então tenho reservado o último momento de minhas orações de antes de dormir para tentar estabelecer contato com o meu. Por ora, tenho lhe endereçado pedidos de ajuda para manter os “ganhos” e administrar as perdas do último ano, mas tenho fé de que chegará o momento de só agradecer.

Que assim seja.

D I S F A R C E

ÉRICA AMÊNDOLA *

Mulher desgraçada!

Acorda atrasada, leva no peito o lençol e derruba travesseiros, dobra tapete no pé, cata a toalha e debaixo do chuveiro abre os olhos pela primeira vez no dia. Bom dia! Bom?

Água curta, rápida, gelada, tem que ser bom!

Que sorte, a roupa pronta na poltrona, só escolhe os sapatos. Que lugar comum, meu, seu, meu Deus!

Briga com a alegria do novo todos os dias, pensa à noite, reza, chora, pede a Deus e pensa que o novo vem assim, tão de graça! Desgraça!

Pronta pra que? Por que? Pra da porta pra fora vestir o disfarce, fingir com a boca pintada, cílios plastificados. Pode chorar à vontade, não vai borrar nada!

 

Érica Amêndola*

jornalista com experiências como repórter, editora-chefe, apresentadora e âncora de noticiário nas empresas EPTV Ribeirão, SBT, Record TV e TV Thaty

 


Amiga querida, sempre de bem com a vida, Eriquinha inaugura a seção PALAVREIROS do blog, que toda semana passa a trazer texto autoral de um convidado.

 

 

Um braço de vento frio cutucador de memórias

Hoje acordei com um braço de vento frio me cutucando na cama. Entrou rápido, logo que o Márcio Pelegrina abriu a janela pra deixar entrar a luz do dia, e foi direto me acordar pra sua presença.

Os elementos devem saber da gente. De consciências indissociáveis, devem compartilhar fofocas sobre o que vai dentro de nós e que é primal, parecido com a matéria de que são feitos.

Este braço de frio chegou sabendo que gosto de como o amálgama de tantos dele trazem os dias de inverno, tão raros em minha cidade.

Sempre fui de avessos: gosto de ver o mundo molhado de chuva quando todos preferem o sol e me agrada nosso inverno ameno, com seus cheiros umedecidos.


Tenho saudades de conseguir ver o belo onde os adultos só viam pobreza e lama


O frio enclausura as pessoas entre paredes – a esta hora eu deveria estar ouvindo gritos de adolescentes jogando bola na quadra da escola com muro de frente para o meu prédio -, mas não. Não me enclausura.

Tanjo muletas e hastes de titânio para a sacada do apartamento pra sentir o mundo, que me parece mais limpo banhado em neblina e sol pálido. Parece também mais calmo. Deito olhos e ouvidos para além do parapeito e não encontro a mesma algazarra de buzinas e gente tanta passando pra lá e pra cá.

O cutucador deve me conhecer de outros tempos, pois acendeu memórias antigas de mim em nossa casa à margem de um Ribeirão Preto margeado por mato alto e a avenida de terra. Pra economizar agasalho, mamãe tirava os corta-febre dos armários pra nos cobrir no sofá, onde eu gostava de ficar aconchegada assistindo “Sessão da Tarde”, nas férias de julho. Algumas noites convencíamos o papi a fazer sua famosa gemada, com cheiro de canela em rama que se espalhava pela casa.

Também guardo uma imagem de abrir a janela do quarto de minha mãe, que dava para a garagem sem muros, e ver uma senhora arrastando seu carrinho de feira no meio da rua – usava-se pouco as calçadas em ruas mansas como aquela. Os matinhos das sarjetas ainda brilhavam de gotículas de sereno e o cheiro de terra molhada inundava de prazer minhas narinas!

Tenho saudades de conseguir enxergar o belo onde os adultos só viam pobreza e lama. Com o tempo, adquiri um mau costume de ver o mundo pelos olhos dos outros e acabou que este jeito de olhar se transformou também no meu.

Mas hoje o cutucão do tempo trouxe de volta lembranças daquela criança que o frio e seus cheiros deixavam feliz e tive vontade de contar.

‘Onde os fracos não têm vez’

Quando assistia ou lia reportagens sobre superação, eu achava que entendia as dificuldades com que cadeirantes tinham de lidar todos os dias. Em dois meses de imobilidade, porém, entendi que os obstáculos vão muito além dos físicos.

Digamos que ser cadeirante não é para amadores. É preciso ter personalidade para incomodar o ritmo, digamos, “normal” do mundo sem sentir-se uma grande “bosta”.

Tive que admitir pra mim mesma, por exemplo, uma certa covardia ao adiar, por mais de uma vez, propostas de passear pelo bairro ou tomar uma cerveja com a família no barzinho da esquina. “Tenho tempo, outro dia vou”, enganava-me, sabendo que, no fundo, não tinha era coragem de desfilar meu mau jeito com a cadeira de rodas por aí.

É difícil para mim fazer alguém levantar-se da própria cadeira para facilitar a passagem da minha, tirá-la de sua atividade para me ajudar a ir ao banheiro, me alimentar, escovar os dentes, trocar de roupa… – alguns desses processos não são rápidos ou fáceis.

É verdade que estou entre pessoas que me amam e não se importam de terem esses trabalhos comigo. Mas não é o que elas sentem a grande questão. Como me sinto dependendo dos outros disse-me mais sobre mim mesma nos últimos dois meses do que em toda a minha vida adulta. É como se parte daquela criança quieta que tentava não dar trabalho por medo de desgostarem dela ainda vivesse dentro de mim – o que é patético!

Então assisto a provas e reportagens das Paralimpíadas e vejo dezenas de portadores permanentes de deficiência não só imporem-se ao mundo, mas atreverem-se a superar um ao outro e a si mesmos em esportes e aparelhos especialmente adaptados para eles.

Eles têm certeza de seu direito de existir, de estarem onde estão, de o mundo poder se adaptar a eles tanto quanto eles ao mundo e que não há mau nenhum em contar com a tolerância alheia. Têm orgulho de si mesmos. Não precisam de compaixão porque não são “coitadinhos”. Inspiram é respeito.

Aí o sentimento que me vem é de vergonha da vergonha.

Lembro-me de uma das crenças de minha mãe, de que nada acontece por acaso e penso que, talvez, o acidente que me rendeu múltiplas fraturas em ambas as pernas tenha ocorrido também para fortalecer minha personalidade. Porque encarar o mundo com uma incapacidade física, ainda que temporária, não é para fracos de caráter.

Acho que hoje vou sair pra calçada.

Sobre a chuva e memórias de infância

* Silvia Pereira

Sempre adorei ver e sentir o mundo molhado de chuva. Gosto de como fica o ar, do cheiro de agradecimento das plantas, do verde vibrante que elas espreguiçam ao toque dos pingos, do barulho deles caindo mansos no chão quando chuva fina e do seu cochicho quando garoa.

E como tenho saudades do cheiro de terra molhada de minha infância! (não o encontro mais pela cidade impermeabilizada)

Cresci numa avenida sem asfalto que margeava o córrego que dá nome à minha cidade natal. Lembro-me de correr para a janela do quarto de mamãe, que dava para a rua, para aspirar os cheiros e cores da terra molhada – para os adultos, compunham um quadro desolador de lama, mato e água suja.


“E quantas vezes voltei da escola literalmente dançando na
chuva, demorando-me embaixo dos jatos d’água das calhas”


Sempre achei aconchegante o escurinho que ficava na sala de nossa casa, toda fechada – uma raridade em um tempo de baixa criminalidade, quando as portas passavam o dia abertas, com vizinhos entrando e saindo sem bater palmas (campainhas eram luxo) e as crianças brincando na rua.

Às vezes, em dias de chuva, eu improvisava uma sala de cinema, reforçando a proteção das cortinas da sala com cobertores. Sentia-me protegida naquele escurinho temperado pelo barulho da água caindo fora.

E quantas vezes voltei da escola literalmente dançando na chuva, demorando-me embaixo dos jatos d’água das calhas que algumas casas apontavam para as calçadas, pulando poças ou aterrissando nelas!

E não me resfriava. Mamãe recolhia conformada a roupa ensopada que eu deixava cair no canto do banheiro antes de me atirar sob o chuveiro quentinho. Eu dormia feliz em dias de chuva!

Enchentes

É uma ironia que eu tenha aprendido a amar a chuva tendo tido bons motivos para temê-la na infância. A avenida em que cresci era a Álvaro de Lima, que aguardou asfalto por décadas de promessas de políticos em campanha e um pouco mais por obras de contenção de enchentes no córrego Ribeirão Preto, que margeia.

Todo janeiro, nas madrugadas chuvosas, eu ouvia mamãe abrir a janela de seu quarto para “cuidar” do nível do rio. Quando o transbordamento ganhava a rua, era uma correria geral em casa para dar conta de erguer móveis sobre cavaletes e subir utensílios para cima de camas, guarda-roupas e sofás antes da “grande invasão”.

Após anos de perdas valiosas – de móveis a lembranças afetivas insubstituíveis -, minha família ganhou uma eficiência espantosa em preparar-se para a enchente com um mínimo de prejuízo.

Eu me ressentia de ser mandada para casa de vizinhos de ruas mais altas, enquanto minhas irmãs ficavam para ajudar na operação. Lembro-me de assistir com inveja, no colo de um vizinho, à minha irmã do meio nadando na rua alagada como se numa piscina.


“Todo janeiro, nas madrugadas chuvosas, eu ouvia mamãe
abrir a janela de seu quarto para “cuidar” do nível do rio”


Anos mais tarde soube – porque não revelavam muita coisa à caçulinha da família – que a “diversão” lhe rendeu uma nefrite (na certa engolira a água contaminada). Até hoje seus rins guardam memória da nefropatia, que quase a levou de nós, marcando um período de sofrimento para meus pais.

E pensar que as enchentes de minha infância são lembradas como as dos “bons tempos” pela família, porque a água nunca subia acima de meio metro dentro de casa – passávamos o ano inteiro olhando para aquela faixa marrom que a invasão do córrego deixava em nossas paredes.

Minha família conseguiu mudar-se para uma Cohab em minha adolescência, mas alguns anos depois a mesma irmã que quase morrera de nefrite foi morar com o marido na casa de nossa infância. A fachada ganhou grades altas e, quando suas filhas chegaram, já não tinham permissão de brincar na rua.

A cada ano, as enchentes deixavam uma faixa mais alta de sujeira nas paredes – resultado de adensamento populacional sobrecarregando os córregos com esgoto sem tratamento.

Eu trabalhava fora da cidade quando recebi, desesperada, a notícia de que a família de minha irmã fora resgatada de sua própria casa por um bote do Corpo de Bombeiros, após assistir do telhado a água engolir todos os seus pertences.

Aprendi, enfim, a odiar enchentes.

Sobre os anjos entre nós

O colega Regis Martins costumava repetir uma frase na redação com a qual sempre concordávamos ante cada notícia sinistra: “o ser humano foi um projeto que não deu certo”. Eu mesma trabalhava sob esta vibração até o acidente ocorrer e ser apresentada a uma nova lição: a de que Deus não mantém apenas anjos invisíveis pra cuidar de nós, mas também utiliza pessoas encarnadas para atuar como tais quando nos abrimos para a ajuda.

O acidente que me fraturou as duas pernas não me deixou outra escolha senão a de me abrir feito paraquedas. Fui rodeada por vários “anjos” desde o primeiro segundo do acidente, quando, deitada no asfalto, as primeiras pessoas que vieram ter comigo foram duas enfermeiras que passavam pelo local (coincidência?).


“Deus não mantém apenas anjos invisíveis pra cuidar de nós, mas também pessoas encarnadas para atuar como tais quando nos abrimos para a ajuda”


Foram elas que, calmamente e com muita técnica, tiraram meu capacete e guardaram minha imobilidade até o socorro chegar. Não me lembro dos rostos, mas das vozes de Mônica e Patrícia me acalmando, consolando, ligando para meus familiares.

Em dado momento, até o policial que veio lavrar a ocorrência, sensibilizado por minha preocupação, ligou para meu marido, ao meu lado, para me assegurar de que ele dirigia razoavelmente controlado pela estrada Jaú-Ribeirão.

Levada para a UPA por um ruído de comunicação, nosso anjo da redação Vivi Renosti providenciou célere minha transferência para o Hospital São Francisco, onde me encontrei com o Elielton Martins, que cuidou de toda a burocracia com eficiência e disponibilidade.

Durante os 21 dias em que fiquei internada, fui manipulada e consolada por tantos anjos de branco! A enfermeira Adriana, as auxiliares de enfermagem Regina, Jéssica, Débora, Gabi, Raissa, Patrícia – entre tantas outras cujos nomes não me vêm agora – mostraram-me a “santidade” de suas profissões, que lida diretamente com a dor alheia.


“minha parte nessa história tem sido a mais fácil:
a de ser ajudada, pelo que sou muito, muito grata”


Quantas vezes me abraçaram após uma manipulação dolorosa e me felicitaram por algum progresso ou pequeno ato de coragem!

Elas são pagas para cuidar, mas fazem muito mais que isso. Doam-se!

E o que dizer sobre os anjos de minha família? Não haveria tempo/espaço suficiente para descrever tudo o que têm feito, tirando de seus cotidianos um tempo que sequer acreditavam ter.

Quando penso em toda a ajuda que tenho recebido, sinto-me uma impostora por receber eu os parabéns pela “minha força”. O que me traz a obrigação de esclarecer que, mesmo com toda a dor e impotência, minha parte nessa história tem sido a mais fácil: a de ser ajudada, pelo que sou muito, muito grata.

É, Regis, tem muito ódio no mundo, mas também tem muito amor e solidariedade. É que esses atuam em silêncio.

Meu colar roxo

Andava eu orgulhosinha de mim, achando que perseverava no desapego, quando meu Márcio Pelegrina veio me apresentar o conteúdo resgatado do bagageiro de minha moto acidentada para inventariar.

Roupa de chuva, ok; cadeado de roda, ok; pashmina que levava pro trabalho, check; bota que calçava na hora do acidente, check; Colar roxo preferido…

(?)

Pronto! Eu, que só havia chorado de dor até então – nem pela moto quebrada, nem pela troca de roupa que arrancaram a tesouradas do meu corpo -, senti o nó na garganta se formar porque não me reencontrei com o colar roxo de tecido com lycra que Zélia Lazarini fez de encomenda pra mim.

Eu o colocava sempre que queria acender um visual monocromático com um ponto de cor – a “minha cor” (já disse que lilás e roxo fazem meus olhos felizes?), para desespero da querida Valeskinha.

Escondi uma lagriminha teimosa assim que ouvi o Márcio voltando da garagem. Trazia meu capacete protegido numa sacola de supermercado amarrada. E eis que, ao desamarrá-la, vejo um volume roxo lindo se destacar contra o fundo preto do estofo.

Beijei, abracei e agradeci por meu colar de malha que as mãos de artesã da Zélia criaram só pra mim. E tudo ficou lindo de novo.

Vai me entender…