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Meus ‘pais’ Zé

Acordei hoje com a notícia do desencarne do jornalista, fotógrafo e empresário José Mário Sousa, o querido “Zé Mário”. Querido por mim e por gerações de jornalistas que, como eu, tiveram sua primeira oportunidade na área graças à sua generosidade e fé.

O Zé tinha fé de sobra, principalmente nas pessoas. Graças a ele pude me desvencilhar de um emprego no qual sofria muito para cometer meus primeiros erros e acertos em uma redação de jornal – saudoso Jornal de Ribeirão, semanário que era feito em um dos prédios do campus da Unaerp, onde me formei, em 1991. Lá o Zé Mário também foi nosso professor de Fotografia no curso de Jornalismo. Conseguiu me fazer acreditar, por um tempo, que meu futuro no Jornalismo passava pela Foto (minha paixão pela palavra venceu).

O passamento do Zé tão jovem (69 anos) me fez lamentar não ter lhe feito nenhuma visita mais demorada desde que voltei a Ribeirão Preto, em 2012, após 17 anos trabalhando fora. Nos esbarramos em alguns eventos para a imprensa. Nos cumprimentávamos rapidamente, como velhos conhecidos que éramos… eu me dizendo que teria tempo, “uma outra hora”, de pagar uma visita para lhe falar de minha gratidão.

Graças ao Zé, não só tive a primeira valiosa experiência no Jornalismo, mas também conheci pessoas que se tornaram amigas do coração para o resto desta vida minha. E Deus sabe que, não fosse aquela redação, essas mesmas pessoas nunca teriam se dado a chance de me conhecer e descobrir que eu não era tão arrogante quanto o meu TDA (Transtorno de Déficit de Atenção) fazia crer – né, Maria Elena “Bil” Covre, Sheila Guimarães & cia? (RISOS).

Não ter encontrado um tempo para o Zé Mário em vida me levou a outro olhar desconfortante para o meu espelho interior (tenho olhado muito pra ele desde que iniciei terapia e Reforma Íntima). Enxerguei – não pela primeira vez – como tendo a me lembrar mais dos chefes ruins que tive na profissão e menos dos que me ajudaram tanto. E olhe que tive dois “Zé” extraordinários nessa trajetória, que me ensinaram muito – muito mais do que eu merecia, percebo agora.

O Zé Mário tinha esse perfil de “pai” carinhoso, que incentiva e joga os rebentos no mundo pra saírem nadando sozinhos. Mas sabia, sim, exigir resultados, sem nunca humilhar e sequer levantar a voz. E o Zé Eduardo, ainda entre nós, mas a um oceano de distância física, era um “pai” mais severo e exigente, mas também muito amigo. Sabia valorizar meu trabalho sem precisar elogiar (queria ter aprendido isso) e acreditou em mim quando eu mesma não acreditava. Acho até que o decepcionei um pouco, mas nem assim desistiu de mim.

Sorte que também acredito que nunca é tarde para nada! Sei que o Zé Mário, aonde estiver, estará recebendo minhas preces de gratidão e meu pedido de desculpas pela omissão de “filha”, porque seu coração segue enorme. Já ao outro Zé, atrevo-me a fazer, ainda, um apelo: trate de viver até os 100 pra eu ter tempo de agradecer por tudo, ainda nesta vida!

Vai com Deus, Zé!

Fica com Deus Zé!

Olhos de ternura (Seo Dema)

Não me lembro exatamente da primeira vez que  conheci.

Sei que a simpatia foi imediata.

Saquei de cara que seu jeito quieto e sério escondia uma ternura caudalosa que lhe saia pelos olhos.
De rotinas sólidas, por anos Seo Dema acordou sempre à mesma hora, tomou seu café na mesma cadeira da mesa da cozinha, leu os dois jornais do dia – um nacional e um local – e foi trabalhar.

Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação.

Não era de reclamar de nada. Os filhos afligiam-se por isso, pois enxergavam, às vezes, abusos de quem sabia aproveitar-se de seu temperamento humilde e trabalhador.

Também viviam comentando que nunca foi de conversar. Mas era, sim, de gestos, reparei logo.

Meu marido conta, emocionado, das idas para o sítio em sua infância, quando o pai fazia questão de parar no início da trilha de terra entre os canaviais, descarregar a bicicleta e ir guiando o carro na frente, com filho feliz da vida voando pelos barrancos de seu bicicross particular.

O sobrinho lembra com carinho de quando quis treinar futebol contra a vontade do pai e o tio ofereceu-se para ser seu motorista. Aparecia sempre pontualmente para pegá-lo em casa, acompanhava o treino inteiro e o entregava são, salvo e feliz aos pais.


“Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito
e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação”


Tudo sem uma palavra. Apenas uma presença mansa, constante… e os olhos ternos.

Crescidos os filhos, cada um pra sua casa, surpreendia-os durante as visitas deles limpando o carro de um antes que acordasse; enchendo o tanque de gasolina do outro sem que percebessem. Chegando no endereço dos pais um imposto de qualquer filho, ele corria ao banco pagar.

Não era para agradar. É que precisava colocar pra fora de alguma forma o carinho que represava no peito. Era sua forma de “amar” sem precisar falar.

Quando sabia que um filho estava pra chegar de visita, ia para a frente da casa esperar. Não saudava. Abria o portão e cumprimentava como se tivesse acabado de vê-los e entrava junto. Mas nos sentíamos bem-vindos.

E quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio.

Também não conversava muito comigo, mas nem precisava.

Um dia, o vi cuidando de uma família de passarinhos que montou ninho no xaxim de planta que descia pendurado do teto da área de serviço. Minha sogra contava que ele os visitava todos os dias, zeloso dos filhotes que a mãe-passarinha alimentava.

Saquei de uma máquina com lente zoom que trazia emprestada e emparelhei com ele pra “assistir” o ninho. Quietinhos, respeitando a distância, esperamos a família se acostumar com a companhia e disparei a fotografar.


“quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura
nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio”


Como ele não sabia sequer entrar no computador à época – depois que o descobriu, virou habituè do jogo Paciência na tela -, imprimi a melhor foto e confiei a meu marido entregar.

E esqueci.

Em uma de minhas visitas seguinte, muitos meses depois – demorava pra voltar por causa do trabalho –, admirei um quadro de passarinhos pregado na parede atrás da sua cadeira predileta. Não reconheci de pronto, mas ele veio logo em meu socorro. “É a foto que você fez”.

E me senti assim envolvida naquele mar de ternura que até então eu só assistia de longe, feliz de sentir-me no rol dos merecedores de seus gestos.

Em suas últimas semanas, ele não pode mais sentar-se. Não conseguia nem falar e os olhos de ternura quedavam, às vezes, inexpressivos, outras doloridos. Tentava falar às vezes, mas a voz não saía. O que será que diria?

Impotente, só rezo pra que tenha lido em nós todo o amor que líamos nele, para que seu olhar parado signifique que enxerga os anjos que devem estar a velá-lo e para que descanse em paz.

  • ao meu sogro, com carinho, aonde estiver.