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Gratidão: um legado

Ontem me emocionei assistindo na TV a depoimentos de pessoas que se recuperam da covid-19. Só quem passou por convalescenças extremas entende o sentimento genuíno de gratidão que vem a cada pequena reconquista de saúde.

Eu sei porque, antes da quarentena do novo coronavírus, eu tive a minha própria entre os julhos de 2016 e 2017. Um acidente de moto, que me quebrou ossos nas duas pernas, provocou imobilidade física e isolamento social forçados. Assistir ao mundo seguir seu curso normal pela TV enquanto mergulhava numa rotina de dores, medicamentos e exercícios fisioterápicos diários não pesou tanto quanto a dependência física total de terceiros – para tudo… banho, alimentação, evacuações e até uma simples troca de posição na cama. Lembro-me de refrear minha sede no período da noite para tentar limitar as idas ao banheiro na madrugada. Assim, com sorte, não sacrificava tanto o sono de meu marido, mesmo ele acordando sempre tão pronto a me ajudar a passar da cama para a cadeira de banho, na qual me empurrava até o banheiro social da casa de minha irmã – ficamos hospedados lá durante meu período de imobilidade total porque o condomínio de nosso apartamento não tem elevador. Como a cadeira de banho não deixava a porta do banheiro ser fechada, Márcio tinha que ficar de guarda no corredor de acesso aos quartos para proteger minha privacidade do direito de ir e vir de nossos anfitriões.

Ainda lembro do quão grata fiquei no dia em que a fisioterapeuta domiciliar me ensinou a técnica de me virar sozinha na cama, com manipulação metódica de travesseiros; de como me emocionei às lágrimas na primeira vez em que consegui, amparada no andador, me encerrar sozinha dentro do banheiro – as pessoas subestimam o valioso privilégio da completa solidão em um sanitário! Também me lembro do amor que senti pelos raios de sol me atingindo inteira – não só um pedaço da perna deixado à luz da janela aberta – em minha primeira saída para o médico em 40 dias de reclusão.

Cada pequena reconquista de mobilidade individual inundava de hormônios de felicidade minha química cerebral, àquela altura calejada pela consciência do quão hostil pode ser o mundo para usuários de cadeiras de rodas, andadores e muletas.

Por tudo isso sei exatamente o que devem sentir os infectados por covid a cada segundo que conseguem respirar sem ajuda. Imagino a alegria deles ao sentirem o primeiro aroma ou sabor após um período prolongado sem olfato e paladar,  mas, principalmente, saber que sobreviveram para mais natais e aniversários em família.

Só não sei o que deve ter sido passar pela convalescença longe de seus entes queridos, pois conheço o valor de ver a pessoa amada chegando em um sorriso quando você está numa cama de hospital; a mão de seu companheiro segurando a sua no momento de maior dor; uma conversa normal, cheia daquelas senhas femininas de praxe, com as amigas que não via há semanas!

Ah se soubessem o valor que tem tudo isso as pessoas que teimam em se aglomerar nas praias e bares a desdenhar a importância da emergência de saúde pelo qual passa o mundo!

Penso que a gratidão por tudo o que tivemos sem a consciência exata de seu valor será o maior legado dos sobreviventes desta pandemia. Espero que ela floresça para além dos corações afetados pela doença física, pois nosso mundo nunca esteve tão necessitado dela!

Sofrer ensina… aos dispostos

O sofrimento ensina aos dispostos.

Só a eles…

Cheguei a esta conclusão refletindo sobre a espiral de violência que acomete nosso país e, em menor grau – mas não menos preocupante -, os Estados Unidos, com seus episódios de chacina de inocentes por atiradores civis.

A violência se retroalimenta quando as pessoas tentam sobreviver à dor devolvendo à sociedade o mesmo ódio de que são vítimas – adolescentes deslocados atiram em seus bullyers, policiais disparam a esmo em favelas onde seus colegas foram assassinados, criminosos pilham e exterminam a sociedade que os exclui…

De outro lado, mães como Lucinha Araújo e a ribeirão-pretana Marília Castelo Branco semeiam o bem entre outras famílias marcadas pelo sofrimento – a primeira criou a fundação Viva Cazuza, dedicada a atender crianças com a doença que matou seu filho, e a segunda a Síndrome do Amor, para dar suporte a famílias com casos de doenças raras, como a que ceifou a vida de seu Thales.

São exemplos de pessoas dispostas a refletir e a aprender com as próprias dores. Como recompensa, colhem gratidão e amor (o que sentem e o que recebem de volta), que lhes servem como apoios “mágicos”- chamemos assim por ora – para seguirem em frente.

Quem perde entes queridos ou enfrenta algum dos males deste século (depressão, pânico e afins) sabe como é difícil viver com essas dores. Mal comparando, é como tentar caminhar carregando nas costas um fardo mais pesado que o próprio peso.

Sobreviver a elas usando o ódio como apoio é a decisão instintiva, inerente a todas as espécies, por isso mais fácil. No entanto, torna o sofrimento inútil e fatal para a raça humana, pois o multiplica e espalha a dor, como uma epidemia a destruir vidas e desnortear famílias, instalando o caos.

Usar como apoio o amor ao próximo contraria este impulso primitivo, por isso demanda disposição e esforço.

O sofrimento só ensina quando aceitamos a oportunidade que ele abre à reflexão e ao aprendizado através do amor. Ouso dizer que é para aprender isso que vivemos neste mundo tão desigual e cheio de injustiças e ódio. Infelizmente, poucos de nós consegue.

Necrológio

Para fazer um necrológio de 2017, que agoniza, tenho a dizer que foi o melhor “pior ano” de minha vida.

Pior porque passei o primeiro semestre dele recuperando-me de um acidente grave e o segundo tentando administrar acontecimentos difíceis: uma readaptação complicada à rotina de trabalho; um AVC e um infarto de minha mãe; dois meses de hospitalização de meu pai por conta de três cirurgias de intestino; o desencarne em circunstâncias tristes de pessoas queridas – meu cunhado-irmão Nando, meu amado tio Silvio Pereira (a quem devo meu nome), o amigo Lau.

Mas também foi o melhor ano porque o termino feliz e serena como em nenhuma outra virada antes, graças a um abençoado mecanismo psicológico que começou a funcionar dentro de mim… um que me fez olhar de outra forma para coisas e pessoas que já tinha antes de cada acontecimento ruim e que me fez perceber quanta sorte tenho por cada uma delas.

O resultado desse mecanismo é um sentimento cujo nome foi campeão de citações nas redes sociais este ano, tendo merecido até matéria em televisão: gratidão.

Eu sei que nem sempre esta hashtag é usada com sinceridade nas redes, mas meu recém-desperto otimismo (outro sentimento que estou aprendendo a exercitar) me leva a acreditar que esta palavra não virou modismo à toa.

Talvez todos os fatos ruins que vêm ocorrendo em nível mundial estejam despertando este mesmo mecanismo em milhares de outras pessoas mundo afora.

Talvez essas milhares de pessoas estejam aprendendo, a  partir do sofrimento, a valorizar o que lhes resta de bom em vez de só chorar pelo que sofrem.

Talvez a nova era que místicos e espiritualistas prometeram para este milênio esteja sendo construída a partir desse sentimento-alicerce.

Muitos “talvez”, eu sei, mas depende de cada um de nós transformá-los em certezas.

Tentarei fazer minha parte. É minha promessa de Ano Novo!

Sobre o solitário aprendizado da gratidão

Hoje quase senti saudades de quando praguejava por problemas como um gasto imprevisto com o carro, uma jornada de trabalho exaustiva ou um desaforo no trânsito – aliás, o motivo de estar numa cama de hospital hoje, por minha própria imprudência.

Tenho tido pretextos para praguejar: hoje as dores em meus membros multifraturados me acordaram e, como não tenho autonomia de buscar meu próprio remédio, preciso esperar que uma das auxiliares de enfermagem (sempre muito atarefadas) atendam a meu chamado e, cientes de minha demanda, consultem em minha ficha o que posso tomar, para, em seguida, acionarem a farmácia e só então colocarem-no para correr por minhas veias.

Outro motivo: as veias de meus braços se cansam após alguns dias recebendo medicação intravenosa pesada (tive uma infecção). Tive de passar – não pela primeira vez – pela experiência de tê-los cutucados inteiros antes de decidirem que o melhor é apelar para uma veia de minha jugular.

Podia ter praguejado todos os últimos dias em que tenho feito doloridos malabarismos só para usar a “comadre” (pra quem não sabe, o penico que se usa na cama do hospital) e tomar um banho de leito. Tenho feito essas necessidades tão básicas – de que antes me desencumbia no automático, sem dar grande importância – com dor e sem privacidade, necessitando da ajuda de muitos e testemunhada por companheiras de quarto.


“combinei com Deus que, se sobrevivesse sem
sequelas permanentes aguentaria tudo o que viesse”


Mas combinei com Deus, no dia do acidente, enquanto aguardava que me avaliassem, rezava e chorava de preocupação com as preocupações dos meus, que se sobrevivesse sem sequelas permanentes aguentaria tudo o que viesse.

E, para minha surpresa, acabei encontrando facilitadores no aprendizado do “não praguejar”:

Mesmo muito atarefadas, as auxiliares de enfermagem e enfermeiras sempre têm uma palavra de incentivo e de reconhecimento por meus esforços (todo o meu respeito a elas daqui pra frente; que profissão difícil essa de lidar com as dores dos outros!);

Minha família sempre arranja uma forma de me lembrar o quanto me ama e como minha dor é também a deles – o que me faz querer ser forte para que não sofram;

Meu marido largou tudo para cuidar de mim em tempo integral, ainda consegue me fazer rir e jamais me deixa sentir auto-piedade;

Amigos queridíssimos têm se feito presentes, fisicamente ou a distância;

Aprendi a fazer origamis, uma arte que sempre respeitei, mas jamais pensei em dedicar um segundo de minha rotina para aprender (que gratificante ver as enfermeiras andando com os que lhes presenteei colados em seus crachás pelos corredores!);

E por fim – e aqui me permitam ser Pollyanna total -, eu podia estar muito pior. Podia ter quebrado coisas que não se consertam e podia nem estar aqui hoje.

Mas estou e sei que hoje foi um dia melhor que o de ontem, que por sua vez foi melhor que o de anteontem e que nesta toada, mesmo demorando muuuuuito (é a previsão), todo este sofrimento vai passar e eu terei aprendido a ser grata – de verdade – por estar viva, por ter privacidade e autonomia nos banheiros e por ter amor em torno de mim.

Se você já tem tudo isso, não espere um acontecimento grave lhe obrigar a colocar tudo em novas perspectivas.

Seja grato já!