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Extravagância e sensibilidade

por José Eduardo Gomes de Carvalho      


O filme mais ambicioso do grego Yorgos Lánthimos, ou, ao menos, o destinado a chegar a um público mais amplo, é um antigo projeto sobre a rainha Anne Stuart, sob cujo reinado Inglaterra e Escócia se unem depois de um transformador período para que possa nascer a atual Grã-Bretanha, com todas suas mazelas. A época de “A Favorita” não podia ser mais turbulenta, incluindo uma guerra secular com a França, tema secundário durante a trama. O que o espectador precisa ter em consideração, porém, é que o próprio Lánthimos relativizou a precisão histórica em suas entrevistas sobre a produção. Não é uma aula de história e, sim, um panorama humano sobre os costumes de uma época.

“Não é uma aula de história e, sim, um panorama humano sobre os costumes de uma época”

A britânica Olivia Colman personaliza Anne, uma mulher de saúde frágil, que comandava o país a partir de seus aposentos reais, onde recebia, com os devidos filtros de seus interlocutores, informações sobre o conflito contra os franceses. Uma íntima amiga e confidente da rainha, Sarah Churchill, é o termômetro do exercício de poder e quem, desde sua capacidade para cooptar a monarca utilizando seus diversos dotes, mexe com as estruturas da corte. A personagem é encarada por Rachel Weisz em uma de suas mais brilhantes interpretações, o que não surpreende. Mas há um terceiro vértice do triângulo palaciano exclusivamente feminino, protagonizado por Abigail Masham, prima distante de Sarah, que sabe perfeitamente como escalar com solidez a pirâmide social. É interpretada por Emma Stone, enquadrada com soberba fluidez na trama, do alto de um perfeito sotaque britânico. A frugal atriz, que já se vestiu de namoradinha da América em várias ocasiões, enfim cumpriu um pós-doutorado.

 

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A força de poder na Grã-Bretanha de então emanava das mulheres, um aparente anacronismo histórico que ajusta com mais precisão a lenda de que o poder feminino era uma ilusão nos tempos aristocráticos. As mulheres sabiam e podiam mandar. Tal realidade surpreendeu o próprio Lánthimos ao esmiuçar a história curta e intensa de Anne e de suas lugares-tenentes. O trabalho do diretor foi estruturar o enredo para que se centrasse na vida pessoal – e nos métodos – dessas três mulheres no centro de decisões da monarquia. O diretor grego admitiu que não ampliou sua precisão histórica para se concentrar no espaço entre o mental e o físico onde se escondem os principais segredos de alcova de uma corte em tempos agitados, o que resultou em uma obra sobre as relações entre poder e convivência, entre ambição política e afeto.

Loucos paradoxos

A rivalidade entra Sarah e Abigail não tarda em surgir, como ponta de lança da trama para que uma delas ocupe o posto de favorita da rainha, cada uma a sua maneira. O resultado é um paradoxo que alterna o sutil e o contundente para revelar três majestosas interpretações, em torno de marcantes relacionamentos humanos que jogam com amor e poder em um insólito universo de domínio feminino para a época. Para tanto, o diretor grego não hesitou em carregar no latente clima de homossexualidade que permeia o filme, para ressaltar o relacionamento humano em si, ainda que tenha cometido outra imprudência histórica – os estudiosos do período não são suficientemente convictos de que Anne Stuart se tratasse de uma homossexual.

“O resultado é um paradoxo que alterna o sutil e o contundente para revelar três majestosas interpretações”

O encontro interpretativo das três atrizes revela interessantíssimos confrontos, de onde brota esse espaço íntimo no qual se jogam importantes questões no aspecto pessoal de uma época tão estudada no nível das consequências histórico-sociais, mas pouco esmiuçada nas questões ligadas às relações humanas. Ou seja, ao mesmo tempo em que se manejava o destino de um país, as favoritas montavam um incendiário duelo emocional em torno da rainha, alternando o sublime e o perverso, o vale-tudo descarado e a sutileza das pequenas armadilhas emocionais da nobreza. Tudo isso em um período, o século 18, no qual as cortes europeias viam como a sexualidade – e em alguns casos a promiscuidade – era um componente nevrálgico das relações palacianas em torno ao poder político e aos mecanismos de expansão das nações.

O diretor exagera bastante nas tomadas com grande angular e no contra plongée, além de abusar da espetacular trilha sonora como apoio ao suspense ou à tensão em determinados momentos argumentativos. É claro que Bach e Schubert caem com perfeição no ambiente palaciano, mas há uma certa overdose sonora no balanço final (que ninguém se espante, inclusive, com “Skyline Pigeon”, de Elton John, nos letreiros de encerramento – é só mais um anacronismo).

O fato é que, por dominar plenamente o ofício, Lanthimos passa um pouco da linha em seus excessos com a câmera, utilizando técnicas de publicidade, um ambiente que profissionalmente conhece bem, e de peças musicais, algo ligado à sua formação no mundo do espetáculo, que inclui uma participação importante na montagem do show de abertura na Olimpíada de Atenas/2004. São virtudes que o recomendam, nunca desabonam, mas que deixam o filme por momentos um pouco espesso, elevando além da conta a sensação térmica de extravagância em determinadas cenas. O principal, porém, a obra conseguiu: retratar o caudaloso ambiente palaciano da chamada “Inglaterra profunda” com transparência e sensibilidade, sem abrir mão de matizes de crueldade, ironia e tragédia. Aliás, esse foi o segundo maior mérito de Lánthimos – o primeiro, obviamente, foi reunir três atrizes excepcionais.

 

José Eduardo Gomes de Carvalho é jornalista, cinéfilo, corintiano roxo e amigo para todas as horas

Tão simples que parece complicado

José Eduardo Gomes de Carvalho*

A ansiedade digital do século 21 fez da gente comum que sonha em ser feliz um alvo fácil para processos estressantes de sobrevivência, que geram pessoas crispadas e agressivas – e, portanto, infelizes. Daí que é automático concluir que a busca pela felicidade mais parece uma lenda. E o próximo passo é virar mito.

A desenfreada procura do ser humano pelo prazer e pela satisfação, ou pela felicidade, enfim, é tão antiga quanto a descoberta do fogo. É verdade que, em certos momentos de nossa vida, falar de felicidade parece um delírio diante dessa necessidade de terminar cada dia, cada mês, mas retomar essa busca sistematicamente pode ser uma saída para os males imediatos, nem que seja por míseros instantes.

Sábios pré-socráticos, filósofos de todas as correntes, acadêmicos e religiosos de vários matizes tentaram ao longo dos séculos dimensionar e tornar palpáveis fórmulas de felicidade, segredos da busca pela realização pessoal e pela convivência feliz. Foram esforços, na maioria, em vão, incluindo as peripécias dos milhares de picaretas da autoajuda, praga típica do mundo contemporâneo, instantâneo e fugaz.

Pois um psicólogo norte-americano, Daniel Gilbert, desconstrói alguns dogmas e derruba barreiras seculares para elaborar um plano de felicidade que não requer habilidades especiais nem grandes posses materiais. Gilbert, além de tudo um exímio argumentador, não se baseia em suposições, mas em minuciosos estudos de comportamento que tornaram as conclusões de suas pesquisas um conjunto de observações com alicerces na Ciência e não em pirotecnias impalpáveis.

PhD em Princeton e professor de Harvard, 60 anos, este pesquisador que abomina os manuais de autoajuda transformou-se num concorridíssimo consultor internacional de vários segmentos, em especial depois do mais lido de seus inúmeros livros publicados, que no Brasil, aliás, recebeu um título empapado de autoajuda, “O que nos faz felizes” (Editora Campus-Elsevier). No original se chama “Tropeçando na Felicidade” (Stumbling on Happiness).

Gilbert não faz suposições nem análises subjetivas. Seus levantamentos são diretos, atingem os alvos sem muito trololó, como a pesquisa com cinco mil pessoas de todas as idades e classes sociais que respondiam coisas como “o que faria você feliz neste exato momento?”, após um telefonema de surpresa – no trabalho, de madrugada, durante as férias. Para o cientista, não se trata de desprezar o que já foi feito por grandes cérebros da história. Ele preza demais, por exemplo, as distintas correntes hedonistas, que basicamente defendem a “felicidade que é simples”, a realização do indivíduo com as coisas básicas a seu alcance e sem nenhum malabarismo financeiro. Mas pondera que os estudos acadêmicos do mundo moderno, individualista e tecnológico, foram revelando, nem sempre para o bem, as atitudes de pessoas de todas as idades, crenças e situações sociais.

Do ponto de vista científico, que é o que interessa a Gilbert, é possível detectar perfeitamente, com os instrumentos à disposição dos estudiosos, o que é o conceito de bem-estar que mais se aproxima do mundo real. E as conclusões apontam para um panorama de surpreendente simplicidade para que a maioria das pessoas se sintam de fato felizes.

Nos resultados da equipe do especialista, quatro pontos são levantados como fundamentais para se atingir um estado seguro de felicidade: exercício físico, conversas/reuniões com amigos, música e sexo. São atividades que elevam corpo e espírito a um patamar de satisfação suficiente para compensar, com lucro, as mazelas da vida e abrir caminho para o equilíbrio pessoal.

Todos os outros itens eram de alguma forma ligados aos temas principais, tais como viajar, passear e conversar com os filhos, curtir os animais de estimação, consumir a comida preferida.

Do escopo da pesquisa não constavam questões nem respostas de alta especificidade, mas coisas como dinheiro, poder/prestígio, uma casa na praia, consumo exagerado ou um carrão da moda pouco apareceram quando as pessoas se referiam à felicidade duradoura.

Nas conclusões do grupo de Daniel Gilbert, o que ficou de mais representativo foi que todos os quatro requisitos para ser feliz podem ser atingidos a custo zero. Ao contrário, ficaram em segundo plano grande parte dos prazeres efêmeros/materiais, estes, sim, que podem custar o olho da cara.

Trata-se da velha diferença entre ter e ser. Tão escandalosamente simples que até parece complicado. É ou não para se pensar?

 

* José Eduardo Gomes de Carvalho é jornalista, “explorador do mundo”, mentor e amigo para toda a vida


 

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