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Um livro e duas mãos

Meu primeiro filho tinha seis meses quando meu marido achou que devíamos viajar, só eu e ele. Eu estava tomada por aquele menino, tão desejado, que tinha saído das minhas entranhas. Estava tão tomada que me sentia uma nova pessoa, a quem eu precisava ser apresentada novamente, apesar dos meus mais de 30 anos de convivência comigo. Se pensar em ficar longe daquele bebê me dava algum pânico, pensar em ficar um pouco longe dele, só comigo, me dava também algum alívio. E o convite era para passarmos 15 dias em Paris, o que facilitou muito a decisão. E lá fomos nós, no dia 25 de dezembro, eu com a dor de ficar longe do meu bebê na primeira virada de ano dele, a qual ele passaria dormindo sem saber ainda que os anos viram. A questão, eu sabia, era minha. Sempre foi só minha.

Nos 15 dias que ficamos em Paris recebi vídeos dos meus pais, que ficaram com meu filho, mostrando a primeira engatinhada dele. Teve vídeo também de um novo dente. E a cada vídeo eu era atravessada pela pergunta “o que estou fazendo aqui?”, ao que eu prontamente respondia: “estou exercendo a minha individualidade”. Por mais que me doesse a distância, saber que eu lutava por me manter um indivíduo me fazia um bem danado. E chegamos ao último dia de viagem, meu coração apertado com a certeza de que o avião cairia e eu nunca mais veria meu filho tão desejado e amado. Porque mães não exercem a individualidade impunemente, assim decretou o patriarcado.

O avião não caiu e ver meu filho de novo, feliz cuidado pelos avós, teve um gosto diferente. Não era só ele que eu abraçava nessa volta. Aquele abraço era também para mim. Eu tinha conseguido.

Quando ele tinha um ano e pouquinho, eu já grávida do segundo, uma barriga do tamanho de quinze meses de gestação, me separei de novo do meu filho mais velho, por uns dez dias. De novo, no último dia de viagem, tive a certeza de que o avião cairia. E de novo quando viajei com minha família de origem, pai, mãe, irmão e irmã, deixando meus dois filhos com o pai. E a cada volta, a cada abraço, eu me abraçava de novo.

Eu sou mãe, sim. Eu amo essas criaturas mais do que qualquer outra criatura que exista, tenha existido ou vá existir sobre a Terra, mas eu sou também um ser, uma mulher. E também me amo muito. E ficar longe deles, de vez em quando, quando posso, é oferecer a eles uma mãe melhor, mais satisfeita.

Já com eles maiorzinhos cheguei em casa um dia, depois de um café com uma amiga que mora na Espanha e estava passando uns dias no Brasil, e avisei: “vou para Madri”. E lá fui eu, um mês depois, ficar fora por uma semana. Lá, na Espanha, a pergunta que mais ouvi das pessoas, ao descobrirem que eu era casada e mãe, foi: “mas seu marido deixa você viajar sozinha?” E todas as vezes expliquei que o verbo “deixar” não se aplicava à relação que tenho com meu marido. Eu não tenho que “deixar” nada. Ele também não. Isso desde o namoro, que durou nove anos. Aliás, nunca tive namorados que me “deixaram” fazer ou não fazer alguma coisa. E acho que a recíproca sempre foi verdadeira. A segunda pergunta que mais ouvi foi: “mas você não sente falta dos seus filhos?” Claro! É claro que sinto, mas eu volto melhor para eles, ainda que eu sempre ache que o avião vai cair e nunca mais verei meus filhos.

No ano seguinte, a viagem aumentou de uma semana para três. Como andei mais, sozinha, respondi às perguntas ainda mais vezes. Liguei todos os dias para casa. Acordaram? Dormiram bem? Tomaram café? Almoçaram? Foram bem na escola? Jantaram? Já vão dormir? E tudo de novo todos os dias. Até para amar é preciso alguma distância.

E no ano seguinte eu ia repetir a viagem de três semanas, pensando já mesmo em um mês, quando veio a pandemia. E aqui estou, há um ano e três semanas, convivendo com meus filhos to-dos-os-di-as. To-das-as-ho-ras. Que bom que é assim. Que posso estar com eles. Mas eles mesmos já notaram: “iihhh, no começo da noite é melhor não falar muito com a mamãe”. Porque estou mais cansada, porque já foi um dia todo em videochamada e telefone e mensagens de texto e de áudio e planilhas e apresentações e páginas em branco e aplicativo do banco e de comida e de farmácia e de supermercado e pedidos de ajuda e notícias de mais gente doente e internada e eu rodando em casa, procurando aqueles cinco minutos de silêncio, sem ouvir “mãe, mãe, mãe… cadê o link?, não acho a lição, o vídeo não entra, o computador travou, minha professora não me escuta, preciso de uma vassoura, onde está meu caderno?, tem folha sulfite?, você comprou o livro de inglês?, e o livro que ensina a fazer pão?” E eu só penso no jumento dos Saltimbancos. Foi me dando uma vontade retada de chorar… e chorar… e chorar… e me tranco no banheiro para dar aquela choradinha, mas batem na porta porque o link não entra e “como faz raiz quadrada? Qual o maior osso do corpo humano?” E eu querendo deitar no chão gelado e me abraçar e gritar que não sei, não sei, não sei…

E como estão as outras mulheres? As que estão com alguém que “deixa” e principalmente “não deixa”? As que estão sem trabalho e cuidando de uma casa e dos filhos sozinhas? As que não conseguem ficar em casa porque precisam fazer o trabalho fora e deixam os filhos sozinhos? E essas mulheres todas me povoam e não deito no chão do banheiro para chorar porque quando uma se levanta, levanta todas as outras, isso eu aprendi.

Em vez disso, saio sorrateira, pego o livro da vez e continuo trancada no banheiro. Quando batem de novo, digo que estou com dor de barriga. E avanço mais um capítulo. Pelo menos algumas boas páginas, ali, sentada no chão gelado. Ganho meus minutos de silêncio, afinal, uma pessoa com dor de barriga deve ser deixada em paz. E saio renovada, pronta para as próximas rodadas. Pronta para esticar as duas mãos a quem me pede. E pronta para pedir a quem tanto me oferece as suas.

À espera das raspadinhas

Abro a tela em branco e a primeira frase que me vem é: já é sexta, de novo? Isso está tão repetitivo. Mas não está repetitivo, mesmo, desde março de 2020? Ou era 2021? Mudamos para 2022 só nos feriados ou o ano virou e nem vi, como a sexta que chegou e a sexta passada que passou, sem que eu tivesse notado, com perdão pelo trocadilho?

Trancada em uma pequena saleta com uma estante repleta de livros, tento manter a respiração. Nunca me sinto sozinha quando estou rodeada de livros. Pelo contrário. Sinto como se cada cabeça pensante por trás de todas essas páginas estivesse aqui comigo, disposta para um chá e um café. Cabeças e corações que tiveram a coragem de registrar em páginas suas angústias, seus medos, suas perguntas nunca respondidas, seus desejos, seus sonhos, seus traumas. Olho para a estante e posso ver o Jorge Amado, por exemplo, sentado ao meu lado, servindo-se de uma xícara, pronto para o bate-papo. Vinícius de Moraes também aparece. E chega o Guimarães Rosa. Como a estante está na casa dos meus pais, onde me refugiei mais uma vez, chega também a Rosamunde Pilcher, quase uma mania da minha mãe. Eu me sinto leve e acolhida e aberta: contem-me mais, contem-me mais, quero saber tudo, quero conhecer mais de cada um de vocês. E colocamos mais água quente na xícara, apesar do calor lá fora.

Mas dura tão pouco. Nenhum deles consegue terminar uma linha de raciocínio. É o filho que chega procurando a fonte do notebook no meio de um ditado, o outro que chora porque não sabe onde está a lição, o telefone que não para de apitar, as contas que não param de vencer e as mortes que não param de aumentar. O pensamento na amiga internada na UTI já perdi a conta das semanas. A espera pelas notícias diárias. E o trabalho que precisa ser feito, e que bom que há trabalho, e exige concentração que não sei mais onde achar. O peito inchado de angústia e cansaço. A pessoa que me disse, dia desses, que já está velha e não vai mais viajar quando acabar a pandemia. Quando pudermos circular de novo pelo mundo. Quando?

Tenho sonhado em ver a praia novamente, da forma mais ridícula possível, rolando livros na areia e me atirando contra as ondas, gritando de alegria a cada vez que conseguir colocar a cabeça para fora da água, com o biquíni todo desajeitado. E talvez eu abrace o sorveteiro e o vendedor de coco e de milho verde cozido. Talvez eu coma tudo ao mesmo tempo, milho duplo. E raspadinha, as mesmas que comia com meu pai nas férias da minha infância. Ainda tem vendedor de raspadinha, com aquela traquitana de alumínio contendo um bloco de gelo enorme?

Eu quero.

Por enquanto, espero. E nos intervalos da espera, peço a companhia dos homens e das mulheres nas estantes.

Pelas janelas do Zoom

De todas as estantes, a da Ana Maria até agora é a mais desejada. Claro, teve a do Caetano Veloso, mas estou falando das pessoas-pessoas, como eu, que fazem reuniões e cursos virtuais e ficam bisbilhotando as casas alheias. Mais do que as salas (ganhou a sala de frente pro mar da Betina), cozinhas (os azulejos coloridos da Aparecida, com um pinguim em cima da geladeira amarela), quartos (o da Luiza que tem o tamanho da minha sala) – e outro dia teve uma mulher-mãe-profissional-desesperada-em-pandemia (o que é praticamente um pleonasmo) que se trancou no guarda-roupas para fazer uma reunião -, eu fico de olho mesmo é nas estantes. Está certo que, devo confessar, eu estava era de olho no gato na varanda do vizinho da Laura, que sem ela perceber também aparecia no vídeo. O gato se espreguiçava sob o sol fraco em um céu azul claro, sem nem imaginar que eu parei de prestar atenção na aula para observá-lo. Até que o vizinho veio, a Laura de costas para eles, e tirou o gato da varanda. Quase abri meu microfone para pedir para a Laura gritar para o vizinho deixar o gatinho ali sossegado. “Em que maluca estou me transformando?”, pensei e voltei para a aula. Até reparar no lustre da sala da Maria Cristina, mais parecido com uma escultura de aço retorcido com luzes amarelas escapando pelas curvas. E se eu mandasse uma mensagem privada para a Maria Cristina, que eu na verdade só conheço pela tela, e perguntasse onde ela tinha encontrado aquele lustre maravilhoso? Voltei para a aula, “presta atenção!”, triste com minha luminária. Foco, foco, foco! Foi aí que a Ana Maria abriu a câmera e estragou tudo. Estantes, estantes, estantes de madeira nem tão clara nem tão escura repletas de livros, luz indireta, amarelinha, quentinha, quase um cobertor em dias de inverno, uma poltrona de couro onde eu poderia não só passar horas sentada ou deitada lendo, mas também dormir. Ana Maria, eu poderia morar na sua biblioteca! Eu queria escrever para ela, em uma mensagem privada, mas a Ana Maria não tinha ideia da minha existência. Tentei dar zoom na tela para conseguir ler os títulos nas estantes, mas esse não era um recurso possível. Tantas foram as vezes que quase plantei bananeira (se eu soubesse teria plantado) no metrô para tentar ler o título do livro que uma pessoa lia com tanta atenção. Quase segui uma mulher uma vez, de tanto que ela não tirava os olhos das páginas. Poderia perguntar que livro era? Sim, mas e a graça da investigação com a alegria da descoberta, como fica? Uma vez foi na praça. Um homem, sentado em um banco, com um livro que eu tinha acabado de ler nas mãos. “Eu amei esse livro!”, gritei para ele, que fechou o livro, sorriu de leve, bem de leve mesmo, e levantou. Antes que eu me aproximasse mais. Fiquei pensando em tudo isso, saudosa do metrô e das praças e das ruas e do contato com estranhos, enquanto tentava descobrir os livros nas estantes da Ana Maria, que para piorar ainda mais a minha situação, se serviu de um chá em uma xícara branca de porcelana pintada com flores azuis. Tudo tão lindo na biblioteca da Ana Maria!… Quero ser amiga dela. Sou inofensiva, juro.

O espaço literário… a coisa mais próxima da vida

Morreste-me. Fazes-me falta. Copo vazio. Um copo de cólera. A morte e o meteoro. Fahrenheit 451. O jardim de cimento. Flores artificiais. As brasas. Vidas secas. O que fazer quando tudo arde? Amor. Guerra e Paz. Festa no covil. Festa do Bode. A festa da insignificância. Viver. A insustentável leveza do ser. Sete anos. Cem anos de solidão. Formas de voltar para casa. Um ano depois.  Certeza do agora. Mulheres de cinzas. Mulheres que correm com os lobos. Mulherzinhas. As meninas. O gigante enterrado. O drible. Outros cantos. Meia noite e vinte. A noite da espera. De mim já nem se lembra. Ruído branco. O ruído do tempo. Espera passar o avião. Enterre seus mortos. Todos os santos. Todos os nomes. Você vai voltar pra mim. Glória. O que ela sussurra. Quando nada está acontecendo. Resta um. A tirania do amor. A um passo. Uma sensação estranha. A fera na selva. Os mortos. Submundo. Tudo é rio. Voltar para casa. Nu, de botas. Entre dois palácios. Desnorteio. Desesterro. A resistência. Enfim, imperatriz. Aos 7 e aos 40. Um, nenhum e cem mil. Eles eram muitos cavalos. É isso um homem? Segredos. Assombrações. Pássaros na boca. Becos da memória. A cidade sitiada. Vivendo sob o fogo. Aprendendo a viver. Nas vertigens do dia. Cadeira de balanço. Bonsai. O silêncio. Flores. O jardim secreto. De verdade. Se deus me chamar não vou. Nem vem. A vida pela frente. Grande sertão. Vida querida.

 

 

  • Este pequeno texto, incluindo o título, é feito apenas e exclusivamente com títulos de livros que têm me ajudado a passar pela vida, que inclui a dor da morte de pessoas queridas, como aconteceu comigo na semana passada, e como tem acontecido com milhares de brasileiros especialmente nesse último ano. Mas que também inclui a beleza da resistência, da solidariedade e da esperança por dias melhores.

Chegou fevereiro…

e não vai ter Carnaval. Quando pudermos fazer festa de novo (há de se ter fé) vou comemorar todos os aniversários passados sem festa e vai ter gente fantasiada de bruxa com paetês fazendo procissão e pulando fogueira e comendo ovo de Páscoa e bebendo quentão com um pedaço de panetone mergulhado ao som de Ivete vestida de Mamãe Noel cantando “pula a fogueira iaiá”, que mesmo quem não gosta de festa vai gostar.

Minha mãe me levava pular Carnaval fantasiada quando eu era criança e não sei dizer se eu gostava ou não. Sei que na pré-adolescência comecei a achar tudo aquilo muito besta, como uma boa pré-adolescente que acha tudo muito besta. Até que na adolescência me enfiei numa matinê com umas amigas e me apaixonei. Por um garoto e pelo Carnaval. Foram anos indo desde o grito de Carnaval até o baile da ressaca. Já teve escola de samba no Rio e em São Paulo. E foi em um desses carnavais que um namorado (não mais a paixão da matinê) me avisou que iria viajar para a praia, só ele e uns amigos. Fiquei indignada. Quem viaja só com os amigos para a praia no Carnaval bem intencionado? Ele nem ligou para a minha indignação e foi. Todo sorridente. Sobrei com um bico enorme na boca.

No sábado de Carnaval pedi para o meu pai me levar até uma livraria. Fazia tempo que eu não lia muito. Era a época de vestibular e toda leitura me remetia a essa prova. Foram os anos em que não tive prazer em ler. Mas minha raiva era tanta que só consegui pensar em livros para passar o Carnaval. Lembro que comprei quatro. Um para cada dia do feriado. De dois deles eu me lembro perfeitamente: “Favela High-tech” e “O amor é fodido”. Este, do português Miguel Esteves Cardoso, era exatamente o que eu precisava naquele Carnaval. Consigo me ver sentada na mesma poltrona da sala, os quatro dias, cada dia com um livro, plena, cheia de vida e alegria. O namorado voltou e foi recebido com saudades. “Tá tudo bem mesmo?”, ele perguntou. “Tá tudo ótimo”, eu respondi sem mentir. Acontecesse o que acontecesse, a partir daquele momento, eu havia descoberto como não sentir solidão.

O namorado mudou. Vieram os filhos e as matinês com eles, eu curtindo mais do que as crianças. Vieram menos bailes do que eu gostaria. Alguns desfiles pela tevê. Outras noites de sono. E veio até fevereiro no Brasil sem Carnaval.

O que importa, agora, é que a minha descoberta continua aqui, pulsante. Essa ninguém me tira. Venha o que vier.

Ouça seu coração, já dizia a minha mãe

Durante os primeiros meses dessa pandemia não foram poucas as pessoas que me mandaram mensagens pedindo dicas de leitura, livros que pudessem fazer com que elas se concentrassem em algo que não fosse o medo. Dicas eu até dei, mas as pessoas ainda me procuravam, chateadas: não consigo ler.

Eu, ao contrário das pessoas que não conseguiam se concentrar na leitura, saí lendo feito uma desesperada, o que eu estava mesmo, em vários momentos. No ano de 2020 li 109 livros de literatura. A lista, que não fez parte de meta alguma, é grande, do tamanho da minha agonia.

No começo, quando ainda achava que ficaríamos um mês em casa e a pandemia estaria controlada, peguei os livros que mais tinha medo de ler, pela dureza do tema, e li muitos deles. Saber que havia histórias piores do que a de pessoas que ficam trancadas em suas casas para evitarem uma contaminação me ajudaria a ver que já houve, e ainda há, situações piores. Foi assim que li todos os livros, até então publicados, da Scolastique Mukasonga. Eu tinha pavor de ler esses livros que têm como tema o genocídio de Ruanda. E, eu estava certa. Depois de lê-los, eu só pensava que não era possível não ter garra para passar por essa, ou qualquer outra, pandemia. Reli “A Peste”, de Camus. Consegui enfrentar as quase mil páginas de “Um Defeito de Cor”.

Mas quando entendi que a pandemia não teria um fim assim tão próximo, tive que mudar de estratégia para não deprimir. Ainda que eu realmente ache que na boa literatura não há quase livros felizes (afinal, a gente escreve sobre aquilo que não conseguimos encarar ou dominar, sobre aquilo que dói – e aí nos comunicamos, aí nos sentimos menos sozinhos – e os momentos felizes estão longe disso), deixei a lista dos livros que me provocam medo de lado e segui por outro caminho.

E o ano virou. E as promessas das vacinas estão mais próximas. Talvez seja como ver um pouco de terra firme depois de um oceano agitado. E agora ficou difícil para mim. Passo o dia fazendo mil coisas que não queria estar fazendo, só pensando no momento de parar e abrir um livro e quando esse momento chega eu viro a página sem saber o que li na anterior. E volto as páginas. E viro de novo, sem lembrar do que li na anterior, e tento mais uma vez e ganho um buraco no peito. Já foram alguns os livros deixados na cabeceira nessa primeira quinzena de 2021. Dois terminados, não sem esforço, confesso. A tristeza que sinto é seca.

Mas aí a magia acontece. Um título indicado há anos e que não tive coragem de ler naquele momento começa a surgir no fundo da minha mente. A voz do livro fica batendo aqui no peito: leia-me, leia-me, leia-me… e depois de alguns dias sendo perseguida por essa vozinha eu decido ceder e aqui estou, dentro de um hospital em Israel, sugando cada palavra, imersa para saber o que vem na página seguinte, uma leitora contente de novo, grata por ter livros que me chamam quando eu mais preciso.

Pelos caminhos circulares

É claro que minha vida tem trilha sonora, como a de todo mundo. “Caçador de mim” me leva direto para a cozinha da casa de duas amigas, irmãs, onde passávamos horas cantando. As letras das músicas em um caderno universitário, escritas pela mãe delas, com anotação das cifras (que nunca consegui ler).  “Ai que saudade d’ocê” e lá estou eu, na sala do apartamento onde morei durante a primeira faculdade, conversando com um namorado ao telefone. “Foi Deus quem fez você” e meu pai, ateu, está dirigindo, fita cassete no rádio, perguntando alto numa pausa longa no final da música: quem fez a Luciana, Amelinha, quem? E ela respondia: “Foi… foi Deus”. “Should I stay or should I go”, “Basket case”, “Overkill”, “No dia em que vim-me embora”,  “Zé do Brasil”, “Mr. Jones” e a lista é longa. Passo (ou passava) quase todos os dias dos últimos cinco anos pela Avanhandava e em todas as vezes me lembro de escutar ali, pela primeira vez, “Eduardo e Monica”. Rua Avanhandava não existe mais para mim sem essa música.

Nesses dias, em que volto para a casa onde cresci, percebo que minha vida também tem lista bibliográfica ligada aos lugares. Pelos caminhos desconhecidos (e que algum mistério ainda nos reste) do cérebro, olhei para uma cadeira no gramado e me vi terminando de ler “Sidarta”, do Hermann Hesse. O sol estava ardido e depois do último ponto final fiquei um tempo ali, na tentativa de absorver um pouco do que tinha acabado de sentir e pensar. O silêncio interno daquele dia volta só de olhar para a cadeira.

Na sala me vi abraçada pela primeira vez com “Anna Kariênina”, o livro nas minhas mãos onde quer que eu fosse e minha irmã me perguntando se eu não podia largá-lo um pouco. Não, eu não podia. E aquela foi só a primeira leitura de muitas. Estou sempre à procura de Anna. Em um sofá que nem existe estou lendo “O amor é fodido” e “Favela high-tech”, em pleno Carnaval, abandonada por um namorado. Foi nesse Carnaval que descobri que a literatura é (também) remédio para a dor. Ainda me vejo sem conseguir dormir, a luz do abajur acesa e meus olhos arregalados, durante a leitura de “O Anticristo”, de Nietzsche. Nesse mesmo quarto meus olhos também se arregalaram com “Sem tesão não há solução”, mas com ele eu conseguia dormir. E sonhar. Harry Potter, nessa mesma cama, chegou a atrapalhar um pouco o sono. Muitos seres esquisitos nos meus pesadelos. No quarto que foi dos meus pais, minha mãe me vendo com “Christiane F.” nas mãos e me dizendo que não era para a minha idade. Foi a deixa. Li ali mesmo, sempre que ela estava longe, com cuidado para deixar o livro no mesmo lugar.

Algumas datas marquei bem. Sei o ano e o mês sem precisar fazer esforço. Para outras faço umas contas para ter alguma noção. Como tem acontecido ainda mais intensamente nessa pandemia. Viramos mais um mês, continuamos proibidos de viajar no espaço e eu sigo tentando me manter com as viagens no tempo.

Os lugares mais bonitos da Terra

Cresci em uma casa com livros nas estantes da sala, mas meus pais não os liam. Eu, pelo menos, não tenho recordação deles com livros abertos nas mãos. Se liam, era em algum lugar (no quarto, talvez) longe dos meus olhos. Meus pais também nunca leram histórias para os filhos. Na hora de dormir era um “boa noite” e um beijo. Então foi na escola que o mundo da literatura se abriu para mim. Se nas aulas de Matemática eu fingia dor de cabeça para não ter que enfrentar uma lógica que não compreendia, com o primeiro livro de ficção já enxerguei algum sentido na vida. Mas, se meus pais não liam, sabiam da importância da leitura na constituição de um ser humano e me estimularam. Se na escola gostei de ler “O cachorrinho Samba” e comentei com minha mãe, ela rapidamente me presenteou com o restante da série, com o cachorrinho Samba na fazenda, na cidade, na floresta, sei lá para onde mais ele foi. Só sei que eu o acompanhei por todos esses lugares. Lembro, ainda, da minha mãe me presentear com o livro “A Montanha Encantada”, também da Maria José Dupré, que me marcou desde o azul da capa. Lembro do livro nas mãos da minha mãe. Lembro do livro passar para as minhas mãos. E do quanto, até hoje, aquelas horas vividas em outra dimensão me marcaram. Se gostei dos livros da Maria José Dupré, então minha mãe procurou tudo o que ela havia escrito. E se minha mãe me viu devorando “O urso com música na barriga”, indicado pela escola, ela complementou minha paixão com outros do Érico Veríssimo. O mesmo com os livros da Fernanda Lopes de Almeida (depois que me tornei mãe, fui atrás das edições de “A fada que tinha ideias” e “Soprinho” que li na infância, precisava daquelas capas novamente ao alcance das mãos).
Hoje, enquanto escrevo esse texto, penso na atenção que minha mãe prestava nas leituras indicadas pela escola, e do quanto também aprendia com elas. Já por iniciativa própria, minha mãe me deu “Pollyanna” e “Pollyanna Moça”, que ela tinha lido e gostado. Minha mãe achava que eu tinha muito a aprender com a Pollyanna, mas a menina (e a moça) só me irritou e resolvi seguir o caminho contrário. Mas não posso dizer que Pollyanna não me marcou. Meu pai, por outro lado, virava e mexia soltava algo sobre algum livro de Graciliano Ramos, autor de quem ele leu toda a obra, em bibliotecas públicas frequentadas na juventude. Mas se eu não via meu pai lendo, ouvi dele essa resposta, quando pedi para ele me comprar um livro: farei o sacrifício que for, mas para livros nunca te falarei “não”. Estava descoberta a minha mina de ouro! Se para a maioria dos brinquedos que pedia eu ouvia “no Natal ou no teu aniversário eu penso sobre isso”, para os livros seria sempre “sim”.

E meu pai cumpriu a promessa. Estava criado o meu time de estimuladores à leitura: as professoras na frente, especialmente a Dona Ângela, professora de português dos meus 10 aos 14 anos, que assumia erros em algumas indicações e mudava de ideia, sempre conversando com os alunos, e meus pais atrás, atentos. E um tio, silencioso, que vinha passar muitos finais de semana com a gente, ou com quem eu passava as férias, o tempo todo com um livro nas mãos e uma cara de enorme satisfação.
Sempre achei bonito ver uma pessoa lendo. Ela estampa um sorriso, mesmo que discreto, de quem descobre uma nova forma (agradável) de estar no mundo. Ela parece carregar um segredo precioso e esse segredo a deixa feliz. Eu sempre quis estar na cabeça das pessoas que estão lendo, parecia um lugar bonito para se passar um tempo. Eu sempre quis conversar com as pessoas que estão lendo: divide comigo isso aí que você sabe e que te deixa assim contente?
Puxa!, exatamente o que faço hoje nos clubes de leitura, acabei de concluir. Viu, Luciana menina, como deu certo? E a Luciana menina tinha razão: é mesmo muito bonita a cabeça de uma pessoa leitora.

Por onde começar?

* THAÍS REGINA ISMAIL

Nunca perder tempo. É a regra para mim, uma mãe solitária que vive com os dois filhos. Cuidar dos boletos, da casa, dos meninos, da cachorrinha, da roupa, da comida, das pernas que doem, das costas que queimam… também cuidar da mãe, do trabalho, do relógio que desperta três vezes todos os dias…

Férias! Preciso de férias urgentemente! São elas as sonhadas, esperadas de joelhos… Olhos vidrados contando os segundos… Aí chegam… Silenciosamente… Ufa!

Grito risonho dentro do carro com os filhos! Comemoramos o fim da falta de tempo pro cinema, pra visita, pro passeio, pra viagem, pra leitura, pra descanso puro e simples no cochilo do sofá (puxa… só lembro do sofá nas férias… e o resto do ano? ele é da cachorrinha… só isso? Só).

Tá. E agora? Por onde começar? O que seria mais gostoso fazer: ocupar o tempo todo com atividades ou largar-me no sofá sem relógio ou remorso? Quantas doses de Netflix?

A árvore de Natal… esqueci de desmanchar… Ah, tão linda! Tão rápido! Penso em minha mãe tentando fazer uma ceia para parentes tão queridos… meu pai prometia, mas nunca vinha. Ela chorava baixinho quando todos estavam sonhando felizes com os seus cavalos indomáveis … e anos passaram lívidos.

Aproveito e vou aos médicos. Vários. Limpo gavetas e guarda-roupas, desapego de fotos e pequenas recordações… Separo as roupas, escondo segredinhos antigos entre papeis e poeira cósmica. É bom, vez ou outra, sentir o passado… Pensar o presente… Deixar-se sonhar como adolescente…

Futuro? Ah, quero saber não. Só se for para planejar leituras de Mia Couto… poemas, por favor!

Aproveito e faço as comidinhas preferidas dos meninos. Visito a amiga de infância que amo mais que chocolate. A Pety é minha irmã com mais coração. É minha verdade sem senões. E temos vinho! Fica perfeito!

Este ano não tem viagem, mas algo está melhor. A simples ideia de estar onde eu sempre quis estar: dentro de mim mesma… a liberdade de escrever e ler quando eu bem entender. Isso, para mim, é o valor de férias reais.

A grandiosidade das coisas já me fascina naturalmente. Mas saber quem sou, sentir quem são as pessoas que amo e que estão aqui… Na vida, o amor corre ao meu redor. Por eles, peço a Deus saúde para mais dias assim.

Ah… Manoel de Barros tem um livro intitulado “Meu quintal é maior do que o mundo”… E eu digo que meu mundo já foi um quintal. Depois… acreditei que já fora um coração. Hoje meu mundo são vozes inesquecíveis, presentes e ausentes.

É libertador apenas escolher uma música… ou um poema… e aceitar-me assim e pronto.

Férias sempre funcionam. São borboletas em sorrisos, são suspiros em travesseiros fofinhos… café fumegando na virada da página poética. É soluço interrompendo a lágrima ardida na passagem do tempo… Férias… Vale tanto a pena esperar por elas!

Mas uma pergunta me surpreende: só durante as férias sei ser eu mesma?

Você já viu plaquinhas que colocam nas portas: “não perturbe”, “fechado”, “ aberto”? Pois bem, a plaquinha que escolhi, agora, durante as férias, para a porta do meu coração diz: “Sem planos”. É tão doce…

 

* Thais Regina Ismail  é professora, sonhadora profissional, amiga para todas
as horas e lírica por natureza


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!

‘Harry Potter’ é universal e atemporal

Logo que a febre em torno da saga Harry Potter chegou ao Brasil, torci o nariz pensando: “se é best-seller, não deve ser bom” (nós e nossos preconceitos!). Mas minha auto-regra, de só me permitir criticar o que conheço, salvou-me, porque fui ler. E não consegui parar! Passei até a experimentar uma espécie de “síndrome de abstinência” (uma tristezinha misturada com um desejo louco de “quero mais”) cada vez que terminava um livro, tão viciada ficava na leitura.

Apesar de a obra estar catalogada como infanto-juvenil, eu já tinha uns 30 e poucos anos quando aderi a seu fã-clube. Conheci, desde então, algumas dezenas de amigos da mesma geração ou mais velhos que também a adoram. Somos a prova de que as obras de qualidade dialogam com todas as faixas etárias. E eu explico a seguir como Rowling consegue isso:

Além de muito bem escritos e cuidadosamente bem traduzidos (Deus sabe como isso é importante!), os livros da saga Harry Potter agregam vários gêneros sob o guarda-chuva da ficção infanto-juvenil: suspense, romance, toques de terror e doses cavalares de críticas social e política – estas últimas explicitadas no universo/cenário que a autora constrói para seus personagens atuarem.

A narrativa é cheia de camadas, que convivem sobrepostas. Cada leitor alcança um número delas, conforme o tamanho de seu repertório interno. Vejamos:

As crianças, por exemplo, alcançam a camada mais exposta dessa construção, que é a aventura em si.

Os adolescentes avançam uma além, ao reconhecerem (e se reconhecerem) nos personagens as motivações que os movem por cada aventura.

E os adultos mais intelectualozados são aptos a enxergar arquétipos contemporâneos e representações de estruturas sociais e de poder – tudo disfarçado por uma embalagem de fantasia.

E os cultos ainda podem se divertir identificando fontes culturais onde Rowling foi buscar referências. Por exemplo: o latim é usado na obra para nomear feitiços (“crucio” = eu torturo, “accio” = eu conjuro, “diffindo” = eu reparo) e personagens (“Severus” = severo, “Lupin” = lobo, “Albus” = branco, todos boas descrições de seus donos);

A autora foi buscar na cultura greco-romana nomes para criaturas fantásticas (centauros, basiliscos, mantícoras, esfinges, fênix, por exemplo) e personagens cujas características têm tudo a ver com os mitos que referenciam. Exemplos: Minerva, deusa da sabedoria, nomeia na saga a professora mais sábia da escola de magia Hogwarts, McGonagall; e a deusa da lua empresta seu nome a Luna Lovegood, a colega de Harry considerada meio “lunática” pelos bullyers de plantão.

Já a jornada do próprio Harry Potter se encaixa no conceito do pensador norte-americano Joseph Campbell (vide livro “A Jornada do Herói”).

Entre as representações sociais mais didáticas da saga está a de uma muito familiar à nossa história recente. No quinto livro, Harry Potter e a Ordem da Fênix (ALERTA DE SPOILER!!!), a autora descreve brilhante e didaticamente um regime de opressão, quando o Ministro da Magia, determinado a manter seu poder, envia uma inquisidora a Hogwarts, que adota medidas autoritárias para sufocar liberdades de opinião e  livre expressão.

A criança pode não fazer a analogia com a realidade logo que lê a história, mas seu inconsciente o fará quando seu cérebro atingir a idade certa. Adolescentes e adultos o farão em seus próprios termos e conforme (repito)  seus repertórios internos e disposições  à reflexão (nem todos estão dispostos).

Todas essas camadas e referências, em minha opinião, tornam a obra universal é riquíssima. Estimulam o leitor a buscar mais conhecimento – parece que está só entretendo, mas está também enriquecendo seu repertório..

E a fantasia é de respeito! Criativa e inteligente, também apreciável por todas as idades.

Atemporal

Considero genial a autora distribuir a saga Harry Potter por sete livros, sendo um para cada ano da vida de seu protagonista, durante um período nevrálgico da formação humana (dos 11 aos 17 anos). Sobretudo nas culturas ocidentais, é a fase em que ocorrem os ritos de passagem da infância para a adolescência, que, em si, já é uma preparação para a entrada na vida adulta. Todo ser humano, em qualquer era da história conhecida, passa por esses ritos, o que também torna a saga atemporal.

Assim é que, no primeiro livro, o bruxinho e toda sua geração assemelham-se a “telas em branco” prestes a terem iniciada a “pintura” do adulto que serão. As tintas são as experiências pelas quais passarão, e os pincéis, as escolhas que cada um fará diante de cada situação.

O padrinho Sirius Black lida com as dúvidas de Harry: ‘todos temos o bem e o mal dentro de nós’

Não por acaso a autora bate muito na tecla das escolhas como determinantes do “destino” – acima da genética e da crença no pré-determinismo. Harry, por exemplo, passa grande parte da saga atormentado pelo medo de estar condenado ao mal, como Voldemort, já que teve uma primeira infância muito similar à do vilão e carrega uma ligação interna com ele desde o episódio traumático da morte de seus pais. É lindo ver como ele vai, aos poucos, chegando à conclusão de que pode escolher e que tudo o que viveu até ali o municiará em cada tomada de decisão.

Amizade e amor: norteadores de escolhas

Seus coadjuvantes mais próximos – e em uma certa medida, co-protagonistas –, Roni e Hermione, atravessam os mesmo ritos, cada um a seu modo, a partir da própria bagagem interna, mas com um sentimento comum a uni-los que faz toda a diferença na hora das escolhas: a amizade. Não por acaso o mesmo sentimento necessário para seguirmos a premissa ética de “fazer ao outro o que gostaríamos que fizessem a nós mesmos” – variação racional de um ensinamento deixado por um “cara famoso” há cerca de uns 2 mil anos.

Por tudo isso, não tenho dúvidas: “Harry Potter” não é só o fenômeno editorial de uma geração, mas um clássico. Ou seja, é para sempre!

 


P.S.: No meu blog de cinema (CINÉLIDE) também tem texto sobre a saga, escrito na ocasião de lançamento do oitavo filme da franquia do cinema: “Harry Potter: lições que podem salvar uma geração


 

GALERIA (clique numa foto para ampliá-la e abrir a galeria)
Nos filmes, atores também passam da infância à adolescência sob os olhares do público