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Qual é o pente que te penteia?

Phillip Roth, de longe meu autor preferido em língua inglesa, escreveu um livro ao mesmo tempo delicado e altamente provocador, chamado “The Human Stain” [A Mancha Humana], que funciona como uma espécie de bíblia antirracista para mim. Conta a estória de um homem oriundo de uma família negra humilde, mas que nasceu com a pele clara. Ao longo de sua infância, ele se dá conta do forte preconceito da vizinhança e dos colegas de escola contra sua família de origem e aos poucos vai se afastando dela, envergonhado.

No início da adolescência, começa a praticar boxe no colégio e se envolve cada vez mais com seu treinador judeu. Em função da proximidade afetiva entre os dois, que se estende para fora da escola, e do tom azeitonado de sua pele, que é comum entre alguns grupos judeus, muitas pessoas começam a imaginar ser ele também de origem judaica. A crença logo se consolida na cidade e o rapaz se aproveita dela para se afastar ainda mais da família e ocultar sua verdadeira identidade racial.

Amparado pela comunidade judaica, ele consegue ascender socialmente, torna-se professor e, mais tarde,  é eleito reitor de uma universidade local. A partir da perspectiva racial, Phillip  Roth vai então tecendo toda uma sutil trama abordando outras “manchas” humanas que orbitam a história de vida do personagem: conflitos psicológicos, disfarce de sentimentos, invejas, disputas de poder, conflitos identitários, preconceitos raciais e de classe social, etc.

Cena do filme norte-americano inspirado no livro de Phillip Roth

Apesar de sua habilidade para se esquivar dos golpes do destino, esse ex-pugilista vai enfrentando uma série de acusações na convivência com seus pares e alunos na faculdade, com os moradores da cidade e também com as mulheres. Certo dia, por exemplo, ele é acusado de racismo por duas de suas alunas afro-americanas por tê-las chamado de “spooks” [fantasmas], um termo fortemente pejorativo. Ele se defende argumentando que se referia apenas à baixa frequência das duas nas suas aulas, mas o conflito se instala, é levado ao conselho diretor da instituição e ele termina sendo demitido.

Em meio à disputa para limpar seu nome, ele sofre ainda com a doença e morte da esposa, uma mulher branca a quem nunca revelou sua origem racial, e acaba atribuindo o AVC sofrido por ela à tensão intrafamiliar decorrente da acusação. Ao mesmo tempo, ele conhece e se apaixona por uma faxineira branca, semialfabetizada e muito mais nova que ele, encarregada de limpar sua sala na faculdade. O encontro amoroso dos dois acaba sendo outra fonte de conflito e de pesadas acusações vindas de um grupo de professoras feministas que o denunciam por assédio sexual e machismo.

O leitor é sutilmente forçado a confrontar, ao longo de todo o roteiro, as nuances do universo psíquico desse afro-americano/judeu e as pretensas motivações atribuídas a ele pela hipócrita sociedade local. Não vou contar outras passagens dramáticas porque sei que os mais apressados perderiam a chance de pinçar por conta própria outras agudas provocações do livro.

O que quero ressaltar aqui é como é difícil se equilibrar num mundo que valoriza as aparências e que nos convida a cada instante a nos envolvermos em um intrincado jogo de espelhos. O convite à luta antirracista proposta nesse livro veio somar-se à minha intensa admiração pela obra de uma professora americana, ativista da causa da diversidade, Jane Elliott. Em uma série de vídeos contundentes, ela promove sessões de conscientização para crianças e adultos quanto às aparentemente inocentes mas perigosas armadilhas do cotidiano que levam à discriminação de pessoas a partir da cor de suas peles.

A série, chamada de “Blue Eyes” [Olhos Azuis], baseada num experimento de sensibilização para o racismo, propõe uma total inversão dos privilégios concedidos às pessoas brancas em nossa sociedade valendo-se de um recurso simples, mas engenhoso: o deslocamento da discriminação por cor de pele para a de cor dos olhos. Ela desenvolve e apresenta aos participantes a pseudo tese “científica” de que os portadores de olhos azuis ou verdes seriam pessoas menos inteligentes (porque lhes falta a melanina da maior adaptabilidade a um ambiente hostil), com mais dificuldades de aprendizagem, mais preguiçosas e mais ”mimizentas” (isto é, eternas reivindicadoras de direitos) do que as pessoas de olhos castanhos.

É simplesmente imperdível acompanhar o profundo choque causado à autoestima dos brancos por essa tese e a enorme comoção que toma conta dos participantes negros ao se verem retratados como pessoas “superiores”. É importante destacar que a participação de todos no experimento era totalmente voluntária – e, mesmo assim, praticamente ninguém opta por sair da sala antes do fim da sessão.

Desde a chegada, os participantes são divididos em dois grupos: os de olhos azuis/verdes e os de olhos castanhos. Os primeiros são obrigados a colocar um colar da mesma cor de seus olhos no pescoço para que seja possível reconhecê-los à distância. São atendidos de forma antipática ou indiferente, precisam esperar o início dos trabalhos sentados no chão de uma sala apertada e sem ar-condicionado. Enquanto isso, os de olhos castanhos recebem uma série de regalias: sucos, lanches, cadeiras confortáveis e tratamento preferencial. Uma vez iniciados os trabalhos, os participantes de olhos claros são então informados de que não poderão interagir com os membros do outro grupo nos intervalos e podem ser penalizados caso protestem contra o tratamento diferencial.

Em um trecho de um dos vídeos, Jane Elliott confronta os participantes com aquela que me parece a proposta mais reveladora do racismo estrutural: “Qualquer pessoa nesta sala que aceitaria passar um dia sendo tratado como nós tratamos os negros neste país, por favor se levante”. Frente ao silêncio constrangido que se sucede, ela replica: “Acho que vocês não entenderam o que eu disse. Vou explicar de novo” – e repete a proposta, com as mesmas palavras. Mais uma vez, ninguém se voluntaria. Ela então conclui: “É pior do que eu imaginava. Vocês sabem exatamente o que acontece… e são coniventes com esse estado de coisas”.

Adotei esse raciocínio como uma espécie de mantra para minha vida e no meu trabalho. Adoraria poder replicar esse treinamento em terras tupiniquins. Se isso fosse possível, no entanto, eu certamente teria de substituir a cor dos olhos por tipo de cabelo, uma vez que é essa característica a que mais concentra a atenção raivosa  dos racistas brasileiros.

Fora o velho xingamento de macaco, repetido à exaustão, o que mais se ouve em todos os casos nacionais de injúria racial é que o “cabelo duro/de Bombril” e os penteados afro não se adequam ao exercício de cargos de recepção ou contato com clientes e até mesmo podem interferir na capacidade e credibilidade dos ocupantes de cargos de liderança. Domar o cabelo rebelde tornou-se então o esporte preferido dos preconceituosos de plantão.  Intimidadas, as vítimas até que tentaram adequar-se, prendendo ou alisando os cabelos, mas o “atrevimento” dos fios em voltar às condições originais continua sendo sinônimo daquilo que mais se rejeita no trato diário com a comunidade negra: a insubmissão, a indisciplina, a ousadia de manter a cabeça ereta e de encarar os frequentadores da casa grande sem pestanejar, direto no fundo dos olhos.

Sobre preconceito e segundas chances

Durante a última semana, ouvi pelas ruas e redes sociais as mais diversas opiniões sobre a morte do ex-interno da Fundação Casa Patrick Cardoso dos Santos, 20 anos, por PMs que invadiram sua casa, na zona norte de Ribeirão Preto.

“Vagabundo tem que morrer”; “não podia ter outro destino uma vida como a dele”; “não tinha conserto”. Tais eram os teores dos comentários.

Voltou-me à memória o polêmico documentário “A Ira de um Anjo”, que me chegou via Facebook sob o título “Crianças psicopatas: a incrível história de Beth Thomas”. O vídeo de 40 minutos começa mostrando uma menina de 6 anos respondendo a perguntas de seu psiquiatra. Seu rostinho angelical não trai o menor traço de emoção ao dar respostas desconcertantemente sinceras numa vozinha doce de criança.


“Vagabundo tem que morrer”; “não podia ter outro
destino uma vida como a dele”; “não tinha conserto”


“Eu batia a cabeça dele no chão (…) eu queria matá-lo”, contava, quando questionada sobre agressões feitas ao irmãozinho. “Eram para matar mamãe e papai”, respondia sobre as facas que escondia em seu quarto.

A norte-americana Beth Thomas tinha 1 ano e meio quando foi adotada, junto com o irmão ainda bebê, por um casal religioso. Durante os quatro anos seguintes, seu comportamento entrou numa espiral de agressividade que levou seus pais adotivos a trancarem seu quarto a chave quando ela ia dormir, para que não atentasse contra a vida da família.

Mas o casal não desistiu de Beth. Procurou ajuda.

O psiquiatra que atendeu a menina descobriu que ela foi molestada pelo pai biológico durante todo o seu primeiro ano e meio de vida, o que a impediu de desenvolver afeição por qualquer ser humano – o outro era sempre uma ameaça. Desenvolveu no lugar muita raiva e uma sexualidade antinatural para sua idade – masturbava-se em qualquer lugar.

Enquanto me inteirava dessa parte da história, mesmo extremamente penalizada, fui traída por um primeiro pensamento preconceituoso: “essa menina não tem conserto, só poderá virar um adulto ruim”.

Não virou.


“essa menina não tem conserto, só
poderá virar um adulto ruim”. Não virou


Beth foi internada em uma instituição especializada no atendimento a menores com problemas comportamentais. O programa consistiu em reconstruir sua auto-estima para torná-la apta a desenvolver laços afetivos e, na sequência, conquistar a capacidade de colocar-se no lugar do outro – o que comumente chamamos empatia.

Quase ao final do vídeo assistimos Beth aos 10 anos chorando amargamente ao tentar responder às mesmas perguntas do primeiro vídeo. Já tinha sentimentos.

Se os pais, médicos e psicólogos que a acompanharam tivessem se rendido a um primeiro pensamento-reflexo como o que tive – ou a preconceitos semelhantes aos das pessoas que aplaudem a morte Patrick -, a “criança psicopata” não teria sido recuperada para um final de infância e adolescência normais e nem se formado enfermeira aos 20 e poucos anos para ajudar outras vítimas como ela.

Hoje Beth também trabalha numa instituição especializada no atendimento a crianças abusadas. Transformou a experiência ruim em aprendizado útil a outrem.


Sem o acolhimento que teve Beth Thomas, cumpriu, nos dez anos seguintes, oito internações na Fundação Casa, por crimes que foram de latrocínio a homicídio


Patrick não foi abusado – não sexualmente. Seu trauma foi o abandono, que o fez, aos 10 anos de idade, pegar a arma do pai para fazer o primeiro assalto – longe da mãe e com o pai preso, já estava por sua própria conta.

Sem o acolhimento que teve Beth Thomas, cumpriu, nos dez anos seguintes, oito internações na Fundação Casa, por crimes que foram de latrocínio a homicídio. Mas quando conversou com nossa colega Daniela Penha, há alguns meses, ainda falava em dar um rumo diferente à sua vida.

Psicólogos e assistentes sociais que o avaliavam desde a primeira internação, em 2008, acreditavam nele, pois o descreviam como comunicativo, calmo, respeitoso e com liderança positiva.

As várias vezes que Patrick voltou pra escola ao longo dos últimos anos também deram pistas de suas intenções de mudar, mas algo sempre o levava a abandoná-la e voltar ao crime.

Na última semana, menos de um mês após cumprir sua última internação, Patrick foi apontado como autor do homicídio de um policial e acabou morto por outro – legítima defesa, alega a polícia.

O Ministério Público investigará se a morte do jovem foi uma retaliação, mas já não fará diferença para ele. Ao contrário de Beth Thomas, Patrick nunca terá outra chance.