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Infância de verdade

Por muito tempo a memória mais forte de acontecimentos ruins da infância me impediram de perceber como foi livre, e em muitos aspectos saudável, meu crescimento numa avenida de terra à margem do ribeirão Preto.

Ainda se chamava Jerônimo Gonçalves quando nasci, mas mudou para Álvaro de Lima na década de 1970 – nunca soube por que, já que seu traçado sempre foi uma continuação da Jerônimo, mas desconfio que para descolar sua imagem pobre e ainda muito rural da outra, desde sempre um cartão postal da cidade.

Nossas casas humildes ficavam na pista sentido bairro, que àquela época tinha mão dupla, pois a do outro lado era quase totalmente tomada pelo mato – sem acesso possível por carro, só pedestres usavam sua pequena trilha pisada. Por ali víamos cabras pastando, cavalos amarrados a árvores, galinhas e pintinhos vagando soltos.

Pelos quatro longos quarteirões de terra, havia casas em que os moradores cultivavam hortas, onde íamos buscar verduras frescas por míseros centavos de cruzeiros. Os quintais espaçosos sempre tinham caldeirões sobre fogões de lenha improvisados para ferver roupas, que depois eram “quaradas” ao sol, sobre plásticos dispostos no chão.

As portas das casas ficavam abertas o dia todo. Vizinhos visitavam-se a qualquer hora, entrando sem bater (campainha? … um luxo desnecessário). As crianças entravam e saíam quando bem entendiam, bastando um grito para a mãe avisando – às vezes nem isso…

A rua ficava praticamente livre para as brincadeiras das crianças, que sempre implicavam intensa atividade física – corda, corrida, pega-pega, pique-esconde, bobinho, guerra… Contávamos nos dedos de uma mão as vezes, no dia, em que tínhamos de recolher as latas de óleo “Liza” da marcação do jogo de Bets para dar passagem a algum carro.

Nem sempre fui feliz naquela rua pobre. Mas fui criança de verdade! E isso não é pouco.

Uma avenida como aquela

Por muitos e muitos anos lembrei-me com saudades daquele dia.

Nem sei ao certo que idade tinha, mas tenho certeza de que foi antes do período escolar, que iniciei com 7 anos completos. Íamos, as três irmãs, espremidas no banco de trás, olhando para as nucas ainda jovens de nossos pais nos bancos da frente.

Papi estacionou o fusquinha azul na que hoje reconheço como sendo a rua Visconde de Inhaúma, bem próximo da esquina com a avenida Nove de Julho, em Ribeirão Preto.

Meu deslumbramento começou assim que pisamos os paralelepípedos da avenida para atravessar ao outro lado, onde pessoas já se aglomeravam em torno da pista com mão de direção no sentido Centro.

A primeira visão daquela avenida rodeada de casarões suntuosos e sombreada por árvores plantadas nos canteiros centrais ajardinados foi um choque.

E ainda haveria outros naquela manhã de descobertas.

Acostumada à paisagem de moradias humildes e encardidas da avenida de terra onde morávamos, emudeci de puro encantamento ao me deparar com as primeiras casas de fachadas amplas, arquiteturas de revista e lindos jardins.

Foi como entrar dentro de um conto de fadas!

Lembro-me de pensar que deveriam ser assim os castelos descritos nas histórias de princesas e príncipes que ouvia em nossa vitrolinha, tocando compactos de vinil coloridos.

Prestei pouquíssima atenção ao desfile que começara a ocorrer no leito carroçável da avenida, ao ritmo de bandas marciais – era um 7 de setembro, descobri depois.

Perdia-me na contemplação de cada detalhezinho dos casarões, cujas grades e portões eram baixos, deixando livre a visão de suas lindas fachadas e jardins – até hoje tenho saudades desse tempo em que a criminalidade não forçava a construção de muros altos e portões maciços.


‘A primeira visão daquela avenida rodeada de casarões suntuosos e sombreada
por árvores plantadas nos canteiros centrais ajardinados foi um choque’


Lembro-me de admirar uma moça sentada em uma das cadeiras de sua ampla varanda, rodeada por plantas de vasos e trepadeiras, linda em sua roupa toda branca e acessórios reluzentes nos braços, colo e orelhas. Imaginei ser uma princesa.

Guardei também a visão de um senhor acotovelado no parapeito da janela de um sobrado a assistir ao desfile de camarote. Passei a achar lindos os sobrados desde então e a me imaginar subindo a escadaria de um castelo sempre que acompanhava meus pais a uma visita a conhecidos que moravam em um. Mamãe passou a desconfiar de minhas vontades de usar o banheiro em toda visita – era meu pretexto para esquadrinhar as escadas.

Sorvi cada visão daquele dia com deleite emocionado. Ainda me lembro da sensação de estar dentro de um momento mágico, em que tudo era beleza e alegria.

Passei a esperar com ansiedade os dias 7 de setembro de cada ano e a me desapontar sempre que chegavam. Nunca mais o passeio em família pelo mundo encantado.

Quando iniciei a escola, inscrevia-me para todos os desfiles de 7 de setembro. Nas primeiras séries, ia vestida em figurino de bailarina que minha mãe costurava e enfeitava de lantejoulas e saia de tule. Davam-me a manipular o que chamavam “baliza” – um bastão todo enfeitado com fitas que deveríamos rodar a título de acrobacias.

Mas nunca mais os desfiles foram na avenida Nova de Julho.

Por alguns anos ocorreram na avenida Independência, que eu não entendia ser perto da Nove de Julho, inexperiente que era na exploração da cidade. Em meus últimos anos de ginásio, já ocorriam nas ruas de nosso próprio bairro de classe média baixa, para minha completa decepção.

Nunca me ocorreu pedir que meus pais me levassem a uma nova visita à avenida dos contos de fadas – naquelas épocas, crianças não tinham quereres!

Quando me reencontrei, adolescente, com a Nove de Julho, seus casarões já eram raros, a maioria havia tido seus lindos jardins e fachadas deformados por comércios e instituições bancárias e os paralelepípedos irregulares ressentiam-se do trânsito intenso de veículos em seu leito carroçável. Não havia mais cores e sorrisos e princesas sentadas em suas varandas adornadas de verde e ricos acabamentos.

Cheguei a chorar de desapontamento, mas, no devido tempo, conformei-me. Já não acreditava em contos de fadas.