Um braço de vento frio cutucador de memórias

Hoje acordei com um braço de vento frio me cutucando na cama. Entrou rápido, logo que o Márcio Pelegrina abriu a janela pra deixar entrar a luz do dia, e foi direto me acordar pra sua presença.

Os elementos devem saber da gente. De consciências indissociáveis, devem compartilhar fofocas sobre o que vai dentro de nós e que é primal, parecido com a matéria de que são feitos.

Este braço de frio chegou sabendo que gosto de como o amálgama de tantos dele trazem os dias de inverno, tão raros em minha cidade.

Sempre fui de avessos: gosto de ver o mundo molhado de chuva quando todos preferem o sol e me agrada nosso inverno ameno, com seus cheiros umedecidos.


Tenho saudades de conseguir ver o belo onde os adultos só viam pobreza e lama


O frio enclausura as pessoas entre paredes – a esta hora eu deveria estar ouvindo gritos de adolescentes jogando bola na quadra da escola com muro de frente para o meu prédio -, mas não. Não me enclausura.

Tanjo muletas e hastes de titânio para a sacada do apartamento pra sentir o mundo, que me parece mais limpo banhado em neblina e sol pálido. Parece também mais calmo. Deito olhos e ouvidos para além do parapeito e não encontro a mesma algazarra de buzinas e gente tanta passando pra lá e pra cá.

O cutucador deve me conhecer de outros tempos, pois acendeu memórias antigas de mim em nossa casa à margem de um Ribeirão Preto margeado por mato alto e a avenida de terra. Pra economizar agasalho, mamãe tirava os corta-febre dos armários pra nos cobrir no sofá, onde eu gostava de ficar aconchegada assistindo “Sessão da Tarde”, nas férias de julho. Algumas noites convencíamos o papi a fazer sua famosa gemada, com cheiro de canela em rama que se espalhava pela casa.

Também guardo uma imagem de abrir a janela do quarto de minha mãe, que dava para a garagem sem muros, e ver uma senhora arrastando seu carrinho de feira no meio da rua – usava-se pouco as calçadas em ruas mansas como aquela. Os matinhos das sarjetas ainda brilhavam de gotículas de sereno e o cheiro de terra molhada inundava de prazer minhas narinas!

Tenho saudades de conseguir enxergar o belo onde os adultos só viam pobreza e lama. Com o tempo, adquiri um mau costume de ver o mundo pelos olhos dos outros e acabou que este jeito de olhar se transformou também no meu.

Mas hoje o cutucão do tempo trouxe de volta lembranças daquela criança que o frio e seus cheiros deixavam feliz e tive vontade de contar.

3 comentários

    • Karine em 11 de março de 2018 às 10:26

    Ah, que lindas memórias! Você me fez ver um dia chuvoso de um jeito diferente, e eu sou grata por isso. Através dos seus olhos, pela primeira vez, imaginei aqui o mundo molhado de um jeito doce… Te conto: na verdade, dias chuvosos e úmidos pós chuva sempre me trouxeram uma angústia e solidão imensa. Sabe aquela solidão bem sua, que nem tem explicação clara? Pois é. Acho que está ligada a lembranças tristes de dias que estão bem distantes, mas ficaram em algum lugar em mim. O que amo mesmo são os dias ensolarados, aqueles de clima não tão quente mas de um sol que acaricia a pele da gente, como um abraço morno, sabe? Bom, acho que vou tentar olhar os dias molhados através dos seus olhos. Te conto depois.

  1. que delicia de olhar! obrigada por nos emprestar um pouco dele….

    • Márcia Intrabartolo em 12 de junho de 2017 às 12:39

    Que lindeza esse texto. Transporta a gente para uma janela…

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