Meu pai, Elizio Pereira (Zague para os boleiros), partiu para outro plano no dia 8 de fevereiro de 2023. Foi ao som de uma playlist de bossas-novas de Tom Jobim e parceiros, que montei especialmente, a conselho de uma amiga – “toca pra ele músicas calmas, que ele goste de ouvir”. E meio que inconscientemente escolhi só coisas que eu escutava na primeira infância, muito por influência dele, que sempre mantinha em casa discos de MPB e fitas cassete de sambas – num tempo em que só existiam sambas canções e raiz.
Naquela quarta-feira eu já tinha entendido que o papí (como nós, as três filhas, o chamávamos) havia desistido. Não era do feitio dele, que voltou de algumas emergências médicas inacreditáveis com otimismo inabalável, mas o fato é que não aceitava mais comida nem remédios há mais de 24 horas. Só água ainda pedia, com um fiapinho quase inaudível de voz, que eu precisava encostar meu ouvido pra escutar. “Não aguento mais”, justificava quando eu insistia em oferecer meus caldos. Super compreensível, já que ele vinha se desmanchando em náuseas e enjoos antes mesmo de tentar engolir qualquer comida. Mesmo assim, liguei pro seu nefrologista pra perguntar “o que é que eu faço?” e calhou da orientação dele bater com a do médico da família que passou vê-lo naquele mesmo dia: “respeita a decisão do paciente”.
Sem mais o trabalho de esvaziar sua bolsa de ileostomia e com medo dele não ter força pra apertar a campainha que pus a seu lado pra me chamar (estava tão fraco e confuso!), decidi passar a tarde no quarto com ele. Coloquei minha caixinha de som sem fio sobre a cômoda, criei a playlist na Apple Music e pus pra tocar. Primeiro me sentei aos pés dele, único lugar vago na cama toda entrincheirada com travesseiros pra ele não cair. Então o assisti movendo com esforço o próprio corpo pelo colchão, no sentido anti-horário até deitar a cabeça no meu colo.
De vez em quando eu habilitava a função karaokê do player pra eu mesma cantar alguma faixa, e ele arregalava os olhos numa expressão de susto, que até agora fico me perguntando se foi mesmo de surpresa ou incômodo (rs… tendo a me entusiasmar quando o tom da música facilita pra minha voz aguda).
Devemos ter ficado cerca de 1h assim, até eu me lembrar de levantar pra pendurar no varal a roupa que havia posto lavar na máquina. Quase não fiz força pra colocar seus 55 kg de pele e ossos (distribuídos por 1,85m de altura!!!) de volta à posição certa na cama. Quando voltei, vendo que ele dormia, abaixei um pouquinho o volume da música, peguei meu livro e passei a ler sentada na cadeira de rodas que ficava ao lado da cama. Com uma mão segurava o livro e com a outra a dele (já disse que minha mão é uma cópia fiel e menor da dele?).
E assim ficamos não sei por quanto tempo mais – talvez 1h ou 2h – eu tirando os olhos do livro de vez em quando para checá-lo. Até que, de uma hora pra outra (ou assim me pareceu), a mão dele gelou na minha. Daí pra frente me lembro de pouca coisa. Sei que liguei pra minha irmã e pro Samu, mas só recordo do que falei na ligação pro Ma, meu marido, já num choro descontrolado: “Papí descansou. Vem pra casa, por favor”.
Não chorei mais depois disso, mas desde então não consigo parar de escutar “Bossas Tom Jobim & Cia” (como nomeei a playlist). Ao longo da última semana, até a turbinei, chegando a ouvir várias versões das minhas preferidas, com diferentes intérpretes, pra escolher a melhor de cada. Mas teve música que entrou duas vezes porque não consegui decidir entre um(a) e outro(a) intérprete e/ou arranjo mais lindo.
O Marcio começou a ficar preocupado com minhas audições repetitivas. “Deixa ele ir embora, Silvia”, disse. E expliquei que deixei, sim. Até confessei que tinha rezado pra ele descansar, e que, misturado com susto, piedade e mais uma tantada de sentimentos que eu não sei descrever agora porque nunca senti antes, também teve alívio no meu choro.
Hoje, completada uma semana do seu desencarne, ainda ouço a playlist, mas juro que sem tristeza alguma. Em parte porque – vamos combinar! – não tem baixo astral que resista às bossas do Tom. E em parte (e esta é difícil de explicar, mas vou tentar) porque essas músicas me transportam de volta a um tempo de pureza do qual nem lembranças visuais eu tenho – só uma memória de sentimentos.
Papí não foi um pai perfeito (algum é?) e nós três guardávamos alguns ressentimentos dele, por ter sido um pai muito autoritário. Mas hoje, ouvindo as músicas, eu procuro, procuro e não encontro mais nenhuma mágoa em mim. Só lembro que ele também foi um pai que amou demais (por isso nos sufocava) e foi o responsável por eu ter crescido em um lar musical. Mesmo arranhando mal o violão (nunca fez aulas), sempre nos convocava a cantar em roda canções brasileiras das antigas com ele tocando – nos chamava de seu “Trio Esperança”.
Na casa em que crescemos, quando a vitrolinha verde não estava ligada, era o rádio/toca-fitas que ele instalou no armário da cozinha, com caixas de som distribuídas pelos quatro cômodos da casa estilo “vagão” (era fio que não acabava mais). E porque também tínhamos uma relação física com a música, decretávamos trégua de qualquer desavença pra dançar um bolero ou sambinha com ele (também era “pé-de-valsa”), fosse sobre o tapete da sala, em um churrasco de quintal ou em um baile do clube.
Tem uma música que o Bono (U2) compôs pro pai dele – à época também com câncer terminal – que diz em um trecho: “You’re the reason I sing / You’re the reason why the opera is in me” (Você é a razão d’eu cantar / Você é a razão da ópera estar em mim). Desde a primeira vez em que ouvi ‘Sometimes You Can’t Make It On Your Own’ eu soube que esses versos serviam pra ser ditos por mim ao meu pai. Mas nunca disse – um monte de histórico ruim me bloqueando…
Talvez ouvir a playlist seja meu jeito de finalmente admitir pro universo (e pra ele) que o papí é a razão da música fazer parte de mim. E – caramba! – nem consigo descrever o quanto sou grata por isso!
Ouvir música me salvou nos momentos mais obscuros da minha vida, me consolou nos mais tristes e me deu prazer nos mais felizes. Não tem ocasiões em que me sinta melhor do que em um show de um ídolo musical ou em um barzinho com música ao vivo bem feitinha. Graças à música encontrei o Ma, um completo desconhecido levado à minha casa pra tocar violão que nunca mais sairia da minha vida (amém!).
Espero que meu pai tenha ouvido toda a playlist (fico em dúvida se ainda estava consciente, pois não ouvi mais sua voz depois que a pus tocar) e que tenha gostado. Também espero que, onde quer que esteja, receba o afago da minha imensa gratidão.
Vai com Deus, papí. Amo sim (já achei que não)! Fica em paz.
6 comentários
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Belíssimas e profundas palavras, ele vai mas vai deixar muita saudade mas estará sempre conosco em nossas memórias e em nossos corações, como diz a canção “vai com Deus, vai com Deus ” Sr Zagui
Quem te conhece sabe o quão inspirador ele foi pra vc. Ficou o legado. Força e siga firme por ele.
Um Carinho Imenso e uma Gratidão Eterno a esse Amigo Querido!!
Silvia, querida! Que relato lindo esse seu texto! Estou muito emocionada. Um abraço carinhoso em ti. Suas palavras estão no meu coração.
Nossos mortos vivem em nós
Que texto avassalador.