Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2022 também assessora de comunicação; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

Saudades de mim

“Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; (…) mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

Este trecho de “Dom Casmurro” teima em soar em minha cabeça desde que o Facebook me apresentou como lembrança esta foto de quatro anos atrás, feita pela querida Mariana Martins. Sorrio leve sobre minha moto seminova – a mesma que acabo de “internar” na oficina mecânica para ser consertada e vendida.

A “Laranjinha” sofreu muito menos que eu no acidente de seis meses atrás. “Quem vê a moto não fala do estrago que fez em você, né?”, brincou meu vizinho Júlio apontando pra ela, aparentemente intacta, na garagem de nosso prédio.

Ver a foto de nós duas inteirinhas me trouxe um sentimento incômodo, acompanhado de um desconforto no estômago que demorei a interpretar. Por isso escrevo (minha auto-terapia).

Não me entendam mal. Sou grata desde o primeiro dia de acidentada – por estar viva, por minha família, por meu marido-enfermeiro-secretário-anjo, por meus amigos -, mas este sentimento não anula o outro que me assalta agora: uma saudade doída de mim… a que dirigia a moto, que precisava de uma coisa e ia sozinha comprar, que podia jogar vôlei se alguém chamasse, andar de bicicleta, fazer yoga, cozinhar em pé…

Eu sei… é uma situação passageira, mas, como dizem, a gente só tem o hoje. E HOJE, andando pior do que uma senhorinha de 70 anos, sinto-me tão tão tão tão longe daquela motociclista sorridente de rosa-choque!

E eu sei que, por melhor que me recupere, aquela “eu” nunca mais vai voltar.

Notas de acidentada

12/8/2016
Podia escrever um script de humor só com gags descrevendo as vezes em que um profissional de branco (há 37 dias eles se multiplicam em torno de mim) avisou-me de que estou condenada a comprovar, para sempre, a verdade sobre a capacidade de nossos avós de predizerem o tempo pelas dores em seus ossos.
Neste momento, sou toda (ossos e hastes de titânio) um verdadeiro mapa meteorológico.

15/8/2016
Saudades de cuidar da minha hortinha, dos cheiros de agradecimento que os temperinhos exalavam quando os aguava, de jogar um manjericão fresquinho em um molho ainda fumegante, de polvilhar com ele e um galhinho de orégano desidratado no varal o tempero com azeite e alho das minhas bruschettas – eu as decorava com tomates italianos descascados e sem sementes picados bem pequenininhos…

20/8/2016
Minha irmã ouve música alta enquanto limpa a casa e faz comida. Márcio reconhece a batida inicial de “Kiss”, do Prince. “Esta você gosta de dançar”, avisa, com o indicador levantado ao lado do ouvido. Ouço a Liz cantar da sala e lembro das três irmãs na casa de nossa infância parando a faxina ao mesmo tempo pra dançarem juntas na sala… Minha mãe continuava na lida como se nada acontecesse, indiferente ao som alto, conformada com a faxina negligenciada.
Sinto saudades de dançar, do som alto no meu apartamento.
Sinto falta de andar.
Vou dançar mais.

17/10/2017
Hoje dei quatro passos sem andador antes de meu joelho esquerdo falsear.
Primeiro fiquei feliz por mais um progresso. Depois fiquei triste.
Não me reconheci com este andar cambaleante e manquitola (minha perna esquerda está 3 cm mais curta que a direita) de velhinha com artrite.
Acho que terei de negociar com minha autoestima esta readaptação à realidade.

‘Sonata de Outono’: bergman eterno

Liberei uma grande lufada de ar dos pulmões ao terminar de rever “Sonata de Outono” (Suécia, 1978), no Cine Arte 1, como se não respirasse há horas. Havia esquecido como o diretor Ingmar Bergman consegue ser impiedosamente denso abordando relações delicadas.

Eva (Liv Ullmann, atriz preferida e esposa de Bergman) recebe em casa a mãe, Charlotte (Ingrid Bergman sessentona e lindíssima), pianista famosa, que não via há sete anos. Parece um feliz reencontro, mas, aos poucos, quase sem percebermos como e quando, os diálogos vão evoluindo de pequenas demonstrações afetivas para um implacável acerto de contas entre filha oprimida e mãe ausente.

Não há vozes alteradas ou gestos dramáticos. Fiéis ao jeito frio de ser dos suecos, Liv e Ingrid são presenças cálidas, quase frágeis na tela. A violência está nos sentimentos que seus diálogos liberam e nas expressões que a câmera de Ingmar capta em closes fechadíssimos – uma de suas marcas.

Há uma cena em que Charlotte confessa a seu agente, com evidente auto-piedade, seu choque ao encontrar a filha mais nova e doente, Helena (Lena Nyman), muito pior que da última vez que a vira anos antes, quando a internou numa instituição – de onde Eva a tirou depois.

“Por que ela não morre?”, diz Charlotte com um ar blasè, como se comentasse o clima.

Assim é Bergman.

‘Onde os fracos não têm vez’

Quando assistia ou lia reportagens sobre superação, eu achava que entendia as dificuldades com que cadeirantes tinham de lidar todos os dias. Em dois meses de imobilidade, porém, entendi que os obstáculos vão muito além dos físicos.

Digamos que ser cadeirante não é para amadores. É preciso ter personalidade para incomodar o ritmo, digamos, “normal” do mundo sem sentir-se uma grande “bosta”.

Tive que admitir pra mim mesma, por exemplo, uma certa covardia ao adiar, por mais de uma vez, propostas de passear pelo bairro ou tomar uma cerveja com a família no barzinho da esquina. “Tenho tempo, outro dia vou”, enganava-me, sabendo que, no fundo, não tinha era coragem de desfilar meu mau jeito com a cadeira de rodas por aí.

É difícil para mim fazer alguém levantar-se da própria cadeira para facilitar a passagem da minha, tirá-la de sua atividade para me ajudar a ir ao banheiro, me alimentar, escovar os dentes, trocar de roupa… – alguns desses processos não são rápidos ou fáceis.

É verdade que estou entre pessoas que me amam e não se importam de terem esses trabalhos comigo. Mas não é o que elas sentem a grande questão. Como me sinto dependendo dos outros disse-me mais sobre mim mesma nos últimos dois meses do que em toda a minha vida adulta. É como se parte daquela criança quieta que tentava não dar trabalho por medo de desgostarem dela ainda vivesse dentro de mim – o que é patético!

Então assisto a provas e reportagens das Paralimpíadas e vejo dezenas de portadores permanentes de deficiência não só imporem-se ao mundo, mas atreverem-se a superar um ao outro e a si mesmos em esportes e aparelhos especialmente adaptados para eles.

Eles têm certeza de seu direito de existir, de estarem onde estão, de o mundo poder se adaptar a eles tanto quanto eles ao mundo e que não há mau nenhum em contar com a tolerância alheia. Têm orgulho de si mesmos. Não precisam de compaixão porque não são “coitadinhos”. Inspiram é respeito.

Aí o sentimento que me vem é de vergonha da vergonha.

Lembro-me de uma das crenças de minha mãe, de que nada acontece por acaso e penso que, talvez, o acidente que me rendeu múltiplas fraturas em ambas as pernas tenha ocorrido também para fortalecer minha personalidade. Porque encarar o mundo com uma incapacidade física, ainda que temporária, não é para fracos de caráter.

Acho que hoje vou sair pra calçada.

Sobre a chuva e memórias de infância

* Silvia Pereira

Sempre adorei ver e sentir o mundo molhado de chuva. Gosto de como fica o ar, do cheiro de agradecimento das plantas, do verde vibrante que elas espreguiçam ao toque dos pingos, do barulho deles caindo mansos no chão quando chuva fina e do seu cochicho quando garoa.

E como tenho saudades do cheiro de terra molhada de minha infância! (não o encontro mais pela cidade impermeabilizada)

Cresci numa avenida sem asfalto que margeava o córrego que dá nome à minha cidade natal. Lembro-me de correr para a janela do quarto de mamãe, que dava para a rua, para aspirar os cheiros e cores da terra molhada – para os adultos, compunham um quadro desolador de lama, mato e água suja.


“E quantas vezes voltei da escola literalmente dançando na
chuva, demorando-me embaixo dos jatos d’água das calhas”


Sempre achei aconchegante o escurinho que ficava na sala de nossa casa, toda fechada – uma raridade em um tempo de baixa criminalidade, quando as portas passavam o dia abertas, com vizinhos entrando e saindo sem bater palmas (campainhas eram luxo) e as crianças brincando na rua.

Às vezes, em dias de chuva, eu improvisava uma sala de cinema, reforçando a proteção das cortinas da sala com cobertores. Sentia-me protegida naquele escurinho temperado pelo barulho da água caindo fora.

E quantas vezes voltei da escola literalmente dançando na chuva, demorando-me embaixo dos jatos d’água das calhas que algumas casas apontavam para as calçadas, pulando poças ou aterrissando nelas!

E não me resfriava. Mamãe recolhia conformada a roupa ensopada que eu deixava cair no canto do banheiro antes de me atirar sob o chuveiro quentinho. Eu dormia feliz em dias de chuva!

Enchentes

É uma ironia que eu tenha aprendido a amar a chuva tendo tido bons motivos para temê-la na infância. A avenida em que cresci era a Álvaro de Lima, que aguardou asfalto por décadas de promessas de políticos em campanha e um pouco mais por obras de contenção de enchentes no córrego Ribeirão Preto, que margeia.

Todo janeiro, nas madrugadas chuvosas, eu ouvia mamãe abrir a janela de seu quarto para “cuidar” do nível do rio. Quando o transbordamento ganhava a rua, era uma correria geral em casa para dar conta de erguer móveis sobre cavaletes e subir utensílios para cima de camas, guarda-roupas e sofás antes da “grande invasão”.

Após anos de perdas valiosas – de móveis a lembranças afetivas insubstituíveis -, minha família ganhou uma eficiência espantosa em preparar-se para a enchente com um mínimo de prejuízo.

Eu me ressentia de ser mandada para casa de vizinhos de ruas mais altas, enquanto minhas irmãs ficavam para ajudar na operação. Lembro-me de assistir com inveja, no colo de um vizinho, à minha irmã do meio nadando na rua alagada como se numa piscina.


“Todo janeiro, nas madrugadas chuvosas, eu ouvia mamãe
abrir a janela de seu quarto para “cuidar” do nível do rio”


Anos mais tarde soube – porque não revelavam muita coisa à caçulinha da família – que a “diversão” lhe rendeu uma nefrite (na certa engolira a água contaminada). Até hoje seus rins guardam memória da nefropatia, que quase a levou de nós, marcando um período de sofrimento para meus pais.

E pensar que as enchentes de minha infância são lembradas como as dos “bons tempos” pela família, porque a água nunca subia acima de meio metro dentro de casa – passávamos o ano inteiro olhando para aquela faixa marrom que a invasão do córrego deixava em nossas paredes.

Minha família conseguiu mudar-se para uma Cohab em minha adolescência, mas alguns anos depois a mesma irmã que quase morrera de nefrite foi morar com o marido na casa de nossa infância. A fachada ganhou grades altas e, quando suas filhas chegaram, já não tinham permissão de brincar na rua.

A cada ano, as enchentes deixavam uma faixa mais alta de sujeira nas paredes – resultado de adensamento populacional sobrecarregando os córregos com esgoto sem tratamento.

Eu trabalhava fora da cidade quando recebi, desesperada, a notícia de que a família de minha irmã fora resgatada de sua própria casa por um bote do Corpo de Bombeiros, após assistir do telhado a água engolir todos os seus pertences.

Aprendi, enfim, a odiar enchentes.

Nasce Bernardo, um virginianinho

Em um dia triste para nossa jovem democracia, chegou Bernardo, meu sobrinho-neto, rodeado de muita alegria e emoção.
Nasceu virginiano, às 9h20 de 31 de agosto de 2016.
Diz a astrologia que seu ascendente em Libra (signo de seu papai, Matheus) amenizará o caráter rígido de Virgem (MEU SIGNO), aumentando sua delicadeza, sensibilidade, diplomacia, o amor pela arte e pelo belo.
Eu aposto cá com meus botões que a batuta firme de sua mamãe canceriana, Giulia Luiz, regerá com maestria a inteligência analítica e crítica, o poder de decisão, o senso prático e a capacidade estratégica do nativo de Virgem.
Que mistura encantadora será de “razão e sensibilidade” (com sua licença, mestra Jane Austen).
Como não ter esperança ante seu rostinho lindo e com tanto amor no ar?
Lanço ao universo minha prece para que ele integre uma geração com valores muito mais intransigentes de honestidade e humanidade.
Você não herdará um país justo, Bernardo (perdoe nossa geração por isso), mas posso garantir que, com os pais e avós que tem, será bem municiado de amor e princípios para sobreviver e ajudar a fazer dele um Brasil melhor.
Vem querido, vem inebriar de amor esta família louca!
E que a vida siga conforme a vontade Dele.

A primeira saída à rua

Ontem vi uma nesguinha de mundo pelos vãos da janela da ambulância. No caminho do primeiro retorno ao médico após a alta, dei-me conta de que não saia para o sol há 37 dias.
Nada demais pra quem ficou feliz só de conquistar o direito a usar as cadeiras de banho e de rodas, após 21 dias de comadres e banhos de leito.
Tentei esquadrinhar o caminho, adivinhar as ruas, intuir as mudanças que perdi da cidade, mas tudo que consegui foi ver tiras de edifícios correndo de mim.
Além do mais, tenho pouca memória de como eram essas paisagens, correndo que passava por elas nos meus trajetos apressados e introspecções.
Mas deixe estar. Quando voltar a pisar o chão – após mais 30 dias de carga zero nas pernas, a contar de hoje, sentenciou o médico – eu é que correrei por essas ruas armazenando panorâmicas da cidade na memória.
E nunca mais deixarei de notar o mundo.

Sobre os anjos entre nós

O colega Regis Martins costumava repetir uma frase na redação com a qual sempre concordávamos ante cada notícia sinistra: “o ser humano foi um projeto que não deu certo”. Eu mesma trabalhava sob esta vibração até o acidente ocorrer e ser apresentada a uma nova lição: a de que Deus não mantém apenas anjos invisíveis pra cuidar de nós, mas também utiliza pessoas encarnadas para atuar como tais quando nos abrimos para a ajuda.

O acidente que me fraturou as duas pernas não me deixou outra escolha senão a de me abrir feito paraquedas. Fui rodeada por vários “anjos” desde o primeiro segundo do acidente, quando, deitada no asfalto, as primeiras pessoas que vieram ter comigo foram duas enfermeiras que passavam pelo local (coincidência?).


“Deus não mantém apenas anjos invisíveis pra cuidar de nós, mas também pessoas encarnadas para atuar como tais quando nos abrimos para a ajuda”


Foram elas que, calmamente e com muita técnica, tiraram meu capacete e guardaram minha imobilidade até o socorro chegar. Não me lembro dos rostos, mas das vozes de Mônica e Patrícia me acalmando, consolando, ligando para meus familiares.

Em dado momento, até o policial que veio lavrar a ocorrência, sensibilizado por minha preocupação, ligou para meu marido, ao meu lado, para me assegurar de que ele dirigia razoavelmente controlado pela estrada Jaú-Ribeirão.

Levada para a UPA por um ruído de comunicação, nosso anjo da redação Vivi Renosti providenciou célere minha transferência para o Hospital São Francisco, onde me encontrei com o Elielton Martins, que cuidou de toda a burocracia com eficiência e disponibilidade.

Durante os 21 dias em que fiquei internada, fui manipulada e consolada por tantos anjos de branco! A enfermeira Adriana, as auxiliares de enfermagem Regina, Jéssica, Débora, Gabi, Raissa, Patrícia – entre tantas outras cujos nomes não me vêm agora – mostraram-me a “santidade” de suas profissões, que lida diretamente com a dor alheia.


“minha parte nessa história tem sido a mais fácil:
a de ser ajudada, pelo que sou muito, muito grata”


Quantas vezes me abraçaram após uma manipulação dolorosa e me felicitaram por algum progresso ou pequeno ato de coragem!

Elas são pagas para cuidar, mas fazem muito mais que isso. Doam-se!

E o que dizer sobre os anjos de minha família? Não haveria tempo/espaço suficiente para descrever tudo o que têm feito, tirando de seus cotidianos um tempo que sequer acreditavam ter.

Quando penso em toda a ajuda que tenho recebido, sinto-me uma impostora por receber eu os parabéns pela “minha força”. O que me traz a obrigação de esclarecer que, mesmo com toda a dor e impotência, minha parte nessa história tem sido a mais fácil: a de ser ajudada, pelo que sou muito, muito grata.

É, Regis, tem muito ódio no mundo, mas também tem muito amor e solidariedade. É que esses atuam em silêncio.

Meu colar roxo

Andava eu orgulhosinha de mim, achando que perseverava no desapego, quando meu Márcio Pelegrina veio me apresentar o conteúdo resgatado do bagageiro de minha moto acidentada para inventariar.

Roupa de chuva, ok; cadeado de roda, ok; pashmina que levava pro trabalho, check; bota que calçava na hora do acidente, check; Colar roxo preferido…

(?)

Pronto! Eu, que só havia chorado de dor até então – nem pela moto quebrada, nem pela troca de roupa que arrancaram a tesouradas do meu corpo -, senti o nó na garganta se formar porque não me reencontrei com o colar roxo de tecido com lycra que Zélia Lazarini fez de encomenda pra mim.

Eu o colocava sempre que queria acender um visual monocromático com um ponto de cor – a “minha cor” (já disse que lilás e roxo fazem meus olhos felizes?), para desespero da querida Valeskinha.

Escondi uma lagriminha teimosa assim que ouvi o Márcio voltando da garagem. Trazia meu capacete protegido numa sacola de supermercado amarrada. E eis que, ao desamarrá-la, vejo um volume roxo lindo se destacar contra o fundo preto do estofo.

Beijei, abracei e agradeci por meu colar de malha que as mãos de artesã da Zélia criaram só pra mim. E tudo ficou lindo de novo.

Vai me entender…

Sobre o solitário aprendizado da gratidão

Hoje quase senti saudades de quando praguejava por problemas como um gasto imprevisto com o carro, uma jornada de trabalho exaustiva ou um desaforo no trânsito – aliás, o motivo de estar numa cama de hospital hoje, por minha própria imprudência.

Tenho tido pretextos para praguejar: hoje as dores em meus membros multifraturados me acordaram e, como não tenho autonomia de buscar meu próprio remédio, preciso esperar que uma das auxiliares de enfermagem (sempre muito atarefadas) atendam a meu chamado e, cientes de minha demanda, consultem em minha ficha o que posso tomar, para, em seguida, acionarem a farmácia e só então colocarem-no para correr por minhas veias.

Outro motivo: as veias de meus braços se cansam após alguns dias recebendo medicação intravenosa pesada (tive uma infecção). Tive de passar – não pela primeira vez – pela experiência de tê-los cutucados inteiros antes de decidirem que o melhor é apelar para uma veia de minha jugular.

Podia ter praguejado todos os últimos dias em que tenho feito doloridos malabarismos só para usar a “comadre” (pra quem não sabe, o penico que se usa na cama do hospital) e tomar um banho de leito. Tenho feito essas necessidades tão básicas – de que antes me desencumbia no automático, sem dar grande importância – com dor e sem privacidade, necessitando da ajuda de muitos e testemunhada por companheiras de quarto.


“combinei com Deus que, se sobrevivesse sem
sequelas permanentes aguentaria tudo o que viesse”


Mas combinei com Deus, no dia do acidente, enquanto aguardava que me avaliassem, rezava e chorava de preocupação com as preocupações dos meus, que se sobrevivesse sem sequelas permanentes aguentaria tudo o que viesse.

E, para minha surpresa, acabei encontrando facilitadores no aprendizado do “não praguejar”:

Mesmo muito atarefadas, as auxiliares de enfermagem e enfermeiras sempre têm uma palavra de incentivo e de reconhecimento por meus esforços (todo o meu respeito a elas daqui pra frente; que profissão difícil essa de lidar com as dores dos outros!);

Minha família sempre arranja uma forma de me lembrar o quanto me ama e como minha dor é também a deles – o que me faz querer ser forte para que não sofram;

Meu marido largou tudo para cuidar de mim em tempo integral, ainda consegue me fazer rir e jamais me deixa sentir auto-piedade;

Amigos queridíssimos têm se feito presentes, fisicamente ou a distância;

Aprendi a fazer origamis, uma arte que sempre respeitei, mas jamais pensei em dedicar um segundo de minha rotina para aprender (que gratificante ver as enfermeiras andando com os que lhes presenteei colados em seus crachás pelos corredores!);

E por fim – e aqui me permitam ser Pollyanna total -, eu podia estar muito pior. Podia ter quebrado coisas que não se consertam e podia nem estar aqui hoje.

Mas estou e sei que hoje foi um dia melhor que o de ontem, que por sua vez foi melhor que o de anteontem e que nesta toada, mesmo demorando muuuuuito (é a previsão), todo este sofrimento vai passar e eu terei aprendido a ser grata – de verdade – por estar viva, por ter privacidade e autonomia nos banheiros e por ter amor em torno de mim.

Se você já tem tudo isso, não espere um acontecimento grave lhe obrigar a colocar tudo em novas perspectivas.

Seja grato já!