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Ouça seu coração, já dizia a minha mãe

Durante os primeiros meses dessa pandemia não foram poucas as pessoas que me mandaram mensagens pedindo dicas de leitura, livros que pudessem fazer com que elas se concentrassem em algo que não fosse o medo. Dicas eu até dei, mas as pessoas ainda me procuravam, chateadas: não consigo ler.

Eu, ao contrário das pessoas que não conseguiam se concentrar na leitura, saí lendo feito uma desesperada, o que eu estava mesmo, em vários momentos. No ano de 2020 li 109 livros de literatura. A lista, que não fez parte de meta alguma, é grande, do tamanho da minha agonia.

No começo, quando ainda achava que ficaríamos um mês em casa e a pandemia estaria controlada, peguei os livros que mais tinha medo de ler, pela dureza do tema, e li muitos deles. Saber que havia histórias piores do que a de pessoas que ficam trancadas em suas casas para evitarem uma contaminação me ajudaria a ver que já houve, e ainda há, situações piores. Foi assim que li todos os livros, até então publicados, da Scolastique Mukasonga. Eu tinha pavor de ler esses livros que têm como tema o genocídio de Ruanda. E, eu estava certa. Depois de lê-los, eu só pensava que não era possível não ter garra para passar por essa, ou qualquer outra, pandemia. Reli “A Peste”, de Camus. Consegui enfrentar as quase mil páginas de “Um Defeito de Cor”.

Mas quando entendi que a pandemia não teria um fim assim tão próximo, tive que mudar de estratégia para não deprimir. Ainda que eu realmente ache que na boa literatura não há quase livros felizes (afinal, a gente escreve sobre aquilo que não conseguimos encarar ou dominar, sobre aquilo que dói – e aí nos comunicamos, aí nos sentimos menos sozinhos – e os momentos felizes estão longe disso), deixei a lista dos livros que me provocam medo de lado e segui por outro caminho.

E o ano virou. E as promessas das vacinas estão mais próximas. Talvez seja como ver um pouco de terra firme depois de um oceano agitado. E agora ficou difícil para mim. Passo o dia fazendo mil coisas que não queria estar fazendo, só pensando no momento de parar e abrir um livro e quando esse momento chega eu viro a página sem saber o que li na anterior. E volto as páginas. E viro de novo, sem lembrar do que li na anterior, e tento mais uma vez e ganho um buraco no peito. Já foram alguns os livros deixados na cabeceira nessa primeira quinzena de 2021. Dois terminados, não sem esforço, confesso. A tristeza que sinto é seca.

Mas aí a magia acontece. Um título indicado há anos e que não tive coragem de ler naquele momento começa a surgir no fundo da minha mente. A voz do livro fica batendo aqui no peito: leia-me, leia-me, leia-me… e depois de alguns dias sendo perseguida por essa vozinha eu decido ceder e aqui estou, dentro de um hospital em Israel, sugando cada palavra, imersa para saber o que vem na página seguinte, uma leitora contente de novo, grata por ter livros que me chamam quando eu mais preciso.

Vai que…

‘Meus pais, avós e tios me perguntavam o que eu gostaria de ganhar de presente nos aniversários e eu respondia: qualquer coisa que não seja mole. Porque, como toda criança pequena, eu não gostava de ganhar roupas. Pegava naqueles pacotes que se amoldavam à minha mão e já pensava: ah, roupa não. Até sapato, que vinha nas caixas, eu gostava, mas roupas?!

Então em um aniversário, eu era bem pequena, uma amiga da minha mãe me deu um pacote duro. Fiquei animada, começou bem. Abri, ansiosa, e era um livro. Um livro! Eu nunca tinha ganhado um livro de presente antes (Tereza, onde será que você está para saber disso?) e fiquei maravilhada. Porque eu gostava dos livros que tinha que ler para e na escola, mas ainda não tinha falado para as pessoas, mesmo para as mais próximas, que eu gostava dos livros. Era um livro do Monteiro Lobato com ilustrações, em preto e branco, papel jornal. Além de ler as histórias com alguma dificuldade, pois estava no início da alfabetização (meu pai e minha mãe nunca leram para mim e eu não sabia que podia pedir para eles lerem), eu também colori as ilustrações, mesmo sabendo que não era um livro de colorir. Aquele era meu livro e eu podia fazer com ele o que eu quisesse, assim como até hoje grifo e escrevo nos meus livros, para desespero de alguns.

Foi também nessa época que em um Natal, na casa da minha tia, tive outra experiência marcante. Essa minha tia era (e ainda é) casada com o homem que eu mais vi lendo na minha vida. Final de semana juntos, os paranauês rolando e meu tio sentado com a cara enfiada em um livro. Ele tinha (ainda tem) uma sobrinha da mesma idade que a minha e quando nos juntávamos no Natal ganhávamos os mesmos presentes. E, nesse ano marcante, meus tios deram primeiro o presente para ela. Um livro! Grande, capa dura, colorido, recheado de contos de fadas. Fiquei ansiosa, aquele mesmo livro logo estaria nas minhas mãos e… não foi o que aconteceu. Pela primeira vez, nossos presentes foram diferentes. Não me lembro qual foi o meu. Me lembro que era um presentão, um brinquedo bom (não é mole, não é, Luciana, gostou?), mas eu só conseguia pensar que não tinha ganhado aquele livro. Por que, eu tinha vontade de perguntar, justo dessa vez nossos presentes não são iguais? Já adulta, comprei um livrão colorido e de capa dura cheio de contos de fadas para mim. O mais perto que consegui chegar daquele que sempre achei que deveria ser meu.

Demorou para eu contar para os meus pais que eu gostava de livros. Talvez por não ver meus pais lendo, talvez por não ver quase ninguém lendo com exceção desse tio, eu não me sentisse encorajada para revelar esse amor. Quando revelei, que bom, fui apoiada. Minha mãe passou a me dar livros. Meu pai passou a dizer “sim” todas as vezes em que eu pedia livros de presente, fosse uma data especial ou não. Que alívio!

Gostar de ler quando estamos em um ambiente com poucos leitores pode ser motivo de vergonha. Michèle Petit chega a dizer que aquele que gosta de ler, nesse ambiente, pode se sentir um traidor. Todos seus amigos lá, por exemplo, com uma bola, e você chega com um livro? A família naquele auê de televisão e você querendo silêncio para ler? Michèle Petit me fez entender porque demorei para fazer a revelação. Porque mantive esse amor em silêncio por um tempo que me parece longo. Por isso, na dúvida, dê livros de presente. Vai que o presenteado está ali, em silêncio, esperando por isso.

Os lugares mais bonitos da Terra

Cresci em uma casa com livros nas estantes da sala, mas meus pais não os liam. Eu, pelo menos, não tenho recordação deles com livros abertos nas mãos. Se liam, era em algum lugar (no quarto, talvez) longe dos meus olhos. Meus pais também nunca leram histórias para os filhos. Na hora de dormir era um “boa noite” e um beijo. Então foi na escola que o mundo da literatura se abriu para mim. Se nas aulas de Matemática eu fingia dor de cabeça para não ter que enfrentar uma lógica que não compreendia, com o primeiro livro de ficção já enxerguei algum sentido na vida. Mas, se meus pais não liam, sabiam da importância da leitura na constituição de um ser humano e me estimularam. Se na escola gostei de ler “O cachorrinho Samba” e comentei com minha mãe, ela rapidamente me presenteou com o restante da série, com o cachorrinho Samba na fazenda, na cidade, na floresta, sei lá para onde mais ele foi. Só sei que eu o acompanhei por todos esses lugares. Lembro, ainda, da minha mãe me presentear com o livro “A Montanha Encantada”, também da Maria José Dupré, que me marcou desde o azul da capa. Lembro do livro nas mãos da minha mãe. Lembro do livro passar para as minhas mãos. E do quanto, até hoje, aquelas horas vividas em outra dimensão me marcaram. Se gostei dos livros da Maria José Dupré, então minha mãe procurou tudo o que ela havia escrito. E se minha mãe me viu devorando “O urso com música na barriga”, indicado pela escola, ela complementou minha paixão com outros do Érico Veríssimo. O mesmo com os livros da Fernanda Lopes de Almeida (depois que me tornei mãe, fui atrás das edições de “A fada que tinha ideias” e “Soprinho” que li na infância, precisava daquelas capas novamente ao alcance das mãos).
Hoje, enquanto escrevo esse texto, penso na atenção que minha mãe prestava nas leituras indicadas pela escola, e do quanto também aprendia com elas. Já por iniciativa própria, minha mãe me deu “Pollyanna” e “Pollyanna Moça”, que ela tinha lido e gostado. Minha mãe achava que eu tinha muito a aprender com a Pollyanna, mas a menina (e a moça) só me irritou e resolvi seguir o caminho contrário. Mas não posso dizer que Pollyanna não me marcou. Meu pai, por outro lado, virava e mexia soltava algo sobre algum livro de Graciliano Ramos, autor de quem ele leu toda a obra, em bibliotecas públicas frequentadas na juventude. Mas se eu não via meu pai lendo, ouvi dele essa resposta, quando pedi para ele me comprar um livro: farei o sacrifício que for, mas para livros nunca te falarei “não”. Estava descoberta a minha mina de ouro! Se para a maioria dos brinquedos que pedia eu ouvia “no Natal ou no teu aniversário eu penso sobre isso”, para os livros seria sempre “sim”.

E meu pai cumpriu a promessa. Estava criado o meu time de estimuladores à leitura: as professoras na frente, especialmente a Dona Ângela, professora de português dos meus 10 aos 14 anos, que assumia erros em algumas indicações e mudava de ideia, sempre conversando com os alunos, e meus pais atrás, atentos. E um tio, silencioso, que vinha passar muitos finais de semana com a gente, ou com quem eu passava as férias, o tempo todo com um livro nas mãos e uma cara de enorme satisfação.
Sempre achei bonito ver uma pessoa lendo. Ela estampa um sorriso, mesmo que discreto, de quem descobre uma nova forma (agradável) de estar no mundo. Ela parece carregar um segredo precioso e esse segredo a deixa feliz. Eu sempre quis estar na cabeça das pessoas que estão lendo, parecia um lugar bonito para se passar um tempo. Eu sempre quis conversar com as pessoas que estão lendo: divide comigo isso aí que você sabe e que te deixa assim contente?
Puxa!, exatamente o que faço hoje nos clubes de leitura, acabei de concluir. Viu, Luciana menina, como deu certo? E a Luciana menina tinha razão: é mesmo muito bonita a cabeça de uma pessoa leitora.

Dormência

 

Estava acostumada a nunca chamar a atenção. Aliás, rezava por isso.

Na escola nova, para a qual transferiu-se logo após a família refugiar-se em um apartamento de Cohab, fugindo das enchentes anuais da casa antiga, à beira de um rio, descobriu uma forma genial de passar despercebida.

Em vez de esconder-se no fundão, como sempre, escolheu sentar-se na primeira carteira da primeira fileira em frente à porta. De costas para todos, podia esquecer-se dos olhares dos outros alunos, que sempre a encabulavam tanto. Ainda fugia às expansões da turma mais descolada, que sempre ficava no fundão e de quem costumava ser alvo fácil de piadas.

Além disso, aprendeu que sentar-se nas últimas carteiras implicava atravessar a sala inteira sob os olhares da turma até chegar ao seu lugar, aumentando as chances de ter que falar “oi” ao chegar ou “tchau” ao sair – interações que sempre demandavam uma troca de olhares, uma certa empostação de voz e uma naturalidade que nunca conseguia fingir direito.

Abandonar a invisibilidade era tão sacrificante!

Costumava rezar, antes de entrar em qualquer novo ambiente, para que estivesse totalmente vazio ou suficientemente cheio para que não dessem conta de sua chegada.

Chegou a dar meia-volta na porta de um consultório médico no qual já aguardavam três pessoas, para que não passasse pela tormenta de sentir-se notada. Sentir os olhares de avaliação de sua altura desmedida para a idade, a magreza exagerada, os dentes grandes encavalados uns sobre os outros por falta de espaço na arcada infantil – o que lhe valeu um apelido inesquecível na antiga escola – despertavam-lhe taquicardias, suores, vergonha extrema!

Na primeira carteira essas ocorrências caíram a quase zero!

Além do mais, podia prestar mais atenção na aula, sua única diversão no dia.

Aprender algo novo costumava irrigar seu cérebro de uma sensação de bem-estar semelhante à que sentiu quando descobriu que conseguia ler as palavras de um livro de histórias infantis pela primeira vez.


“Aprender algo novo costumava irrigar seu cérebro
de uma sensação de bem-estar semelhante à que
sentiu quando descobriu que conseguia ler”


Mundos novos se abriam para sua imaginação, onde se refugiava a maior parte do dia, quando em casa.

Ter nascido a temporã de quatro irmãos a relegou a um isolamento não planejado, que ela aprendeu a preencher com histórias que criava em sua imaginação – quase sempre continuações para os filmes que assistia na Sessão da Tarde.

Aprender lhe municiava com ferramentas para enriquecer ainda mais essas narrativas.

Por isso nunca estudava para provas. Não precisava. O que sorvia na primeira aula sobre qualquer assunto, nunca mais esquecia. Tirava notas máximas em tudo sem esforçar-se.

Seu caderno, sempre em dia com as tarefas que fazia prazerosamente na mesa da cozinha, logo que chegava da escola, era disputado todo dia seguinte, por alunos apressados em copiar os exercícios que a professora passara como dever de casa.

Não se importava, desde que a deixassem em paz pelo restante da jornada!

Logo descobriu na escola nova uma biblioteca, onde podia pegar livros emprestados gratuitamente, a hora que quisesse. Costumava ouvir perguntas incrédulas de outros alunos ante as pilhas que costumava levar para casa: “Você vai ler tudo isso?”.

E lia.

E sentia tanto prazer, que aos poucos começou a querer escrever histórias também, para remendar aquelas cujos finais não a tivessem agradado. E criar histórias passou a ser um passatempo prazeroso, que não a deixava perceber o quanto era solitária.

Em sua cabeça, não o era.

Chegaria o tempo em que sentiria necessidade de interagir fora de sua imaginação e essa transição não seria fácil nem indolor.

Mas esta é uma outra crônica.