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A Mulher do Verdureiro

Sinto falta da informalidade nas relações de minha infância.

Lembro de uma época de portas sempre abertas, de vizinhos que entravam e saíam das casas uns dos outros sem bater palmas – no máximo, avisavam em voz alta que entravam. Campainhas eram raras, mais por serem desnecessárias do que consideradas um luxo naquela rua de casas modestas. Havia casas sem muros ou com eles baixos, fáceis de pular para pegar uma bola que caísse dentro, escapulida dos jogos da criançada na rua. Como os telefones fossem privilégio de poucos, os parentes se visitavam sem aviso prévio. Chegavam a bordo de sorrisos confiantes, certos de que seriam recebidos como a melhor das surpresas. E eram!

Mamãe fazia um dinheiro extra para as despesas da casa fazendo manicure e pedicure das mulheres da vizinhança. Nem agenda tinha para marcá-las. As freguesas eram naturalmente esperadas todas as tardes de sábado, quando nosso corredor de acesso ao quintal ficava cheio delas a tagarelarem sobre tudo quanto era assunto. Apareciam na hora em que seus afazeres domésticos permitiam e esperavam pacientemente sua vez de serem atendidas, definida por ordem de chegada.

Na falta de espaço melhor, mamãe improvisava seu mini spa na cozinha mesmo, entre a mesa de refeições e a pia. Colocava a freguesa sentada numa cadeira ao lado da mesa, de costas para a parede, e sentava ela própria em um banquinho baixo, de frente para a mesma, e passava a tarde a aparar cutículas e esmaltar unhas – com o tempo, sua coluna se ressentiu muito daquela posição mantida por horas.

Às vezes acontecia de uma ou outra vizinha aparecer de surpresa, durante a semana, pra ver se não acontecia de mamãe conseguir atendê-la sem aviso, em nome de  alguma emergência cosmética. Não sei explicar porque ficou em minha memória, de uma forma muito nítida, o dia em que o verdureiro trouxe sua esposa pra mamãe atender sem aviso. Chegaram ambos em sua carroça de madeira – a mesma em que ele passava vendendo as verduras que cultivava em sua horta doméstica – puxada por uma mula.

A mulher desceu muito arrumada em sua simplicidade, cheirando a banho fresco e com o cabelo curto e negro ainda úmido – o rosto branco enrugado de sol iluminado por um sorriso de dentes grandes e amarelos. Lembro o misto de carinho e compaixão que me inundou a visão daquele riso tão aberto, a apelar amizade, simpatia e aprovação, como a se desculpar pela timidez. Ainda enxergo em minha memória suas unhas deformadas por sulcos desde as raízes, que só mais tarde entendi serem resultado de afastamentos brutais de cutículas. Mamãe, sempre gentil, fingiu nem perceber e tratou de esculpi-las e esmaltá-las como as mais lindas, como sempre. Mal ouvimos sua voz durante o processo, mas percebi que deixou a cadeira de mamãe sentindo-se mais feminina do que entrou. O marido já a aguardava com a carroça em nossa rua de terra, em cuja sarjeta sua mula deliciava-se a comer uma moita de capim. Achei lindo ele estender a mão para ela se apoiar na subida e  sentar-se na tábua encardida que fazia as vezes de banco, numa alegria fácil.

Nunca mais voltei a ver a mulher do verdureiro. Pode ser que mamãe tenha voltado a atendê-la em horários da minha escola – nunca me ocorreu de perguntar -, mas nunca me esqueci de sua presença adorável e seu sorriso franco de dentes grandes e amarelos. Lembro de ter desejado, então, ser tão feliz quanto ela. Hoje, quando a recordo, só desejo que ela tenha sido tão feliz quanto me pareceu então.

‘Todos os dias é um vai e vem…’

por Márcia Intrabartollo   

O casalzinho se foi carregando quatro malas enormes e chegou na outra parte da América só com isso, os longos cabelos lisos dele e os olhos de rolinha dela. Ela começará a dizer “I love you”, como ele faz há tempos. Seus pés dançantes logo acharão um lugar para ensinar seu tango, fato que me atrevo a contestar de leve: brasileiros ensinando tango reforçará a ideia de que Buenos Aires é a capital do Brasil.

‘Brasileiros ensinando tango reforçará a idéia de que Buenos Aires é a capital do Brasil’

Podia ser frevo, mas quem sou eu para dar palpites? A vida é que vai ensinar aos dois o novo ritmo e passo, e a nós também, que ficamos aqui com parte da vida que eles deixam para trás.

Diz o Chico Buarque que “chega a roda viva e carrega o destino para lá”, mas retifico sua composição: carrega o destino para lá e para cá. Nós, aqui, teremos a sensação de sermos um pouco eles, aguando suas plantas, temperando a comida com seus condimentos, como se de repente tivéssemos entrado em uma casa habitada da qual pudéssemos dispor como quiséssemos, desde que mantendo a salvo os discos.

Herdamos orquídeas, rosa do deserto e um pé de erva-doce com botões. Veio um saquinho plástico com um pouco de cúrcuma fresca e uma caixa de temperos que levei no colo. O carro se perfumou de mercadões. A pimenta preta. A canela em pó. A páprica, o orégano, o chimichurri.

No Carnaval, fritamos o anis-estrelado antes de pôr o cogumelo na panela. Ficou bom. Coloquei cravo em pó no leite quente para aproveitar o frescor das chuvas. Nem sei se estou fazendo certo. Estou cintilando nossas comidas de Cintia, a de cabelos escorridos. As flores do pé de erva-doce nasceram loiras como o Paulo. Ponho água nas plantas torcendo para que fiquem saudáveis e floresçam, e eu possa mandar fotos para San Diego e alegrá-los. Está tudo bem.

Ontem tiramos o pó dos discos, acomodamos a coleção de Chico Buarque, Belchior, Milton, Clube da Esquina e tantos outros em um armário. Vimos que alguns devem ter sido anteriormente de outras pessoas, desconhecidos que agora compõem nosso mosaico musical. Encontros e despedidas, não é Milton? “E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”.

Meu bem vai comprar na José Bonifácio o cabo para a caixa de som que ficou sobre uma antiga mesa de costura, que, por sua vez, também herdamos de quem precisou abrir mão para se mudar. Quando a vitrola funcionar, porei, de vez em quando, os discos de tango para que as plantas matem a saudade do casalzinho. Tocarei um disco diferente por dia e pensarei que as vibrações daquelas músicas chegarão a todos aqueles a quem pertenceram.

“A plataforma dessa estação é a vida”, tocará. A vida que voa, circula, muda de mãos, se embrica, se esfrega nas outras e faz intersecções.

Enquanto eu escrevia, eles cruzavam, aventureiros, o Atlântico.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina mundo afora e aprendiz de escritora