Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora
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jun 06 2018
Nosso incrível exército de Brancaleoni (com ‘i’ mesmo)
Bastou caminhar um dia na Itália, de Aosta a Châtillon, para aprendermos que fazer trekking é entrar para o exército. Servimos na via Francígena precisamente de 22 de junho a 19 de julho de 2017, onde aprendemos a ter coragem diante dos coelhinhos brancos, disciplina para lavar diariamente as roupas sujas, tenacidade para comprar comida no supermercado, estratégia para programar o dia seguinte e resiliência para madrugar.
A rotina espartana era cumprida sob o comando de uma provável descendente do líder do Incrível Exército de Brancaleone (já disse que o sobrenome da Renata é Brancaleoni?). Passados quase 20 dias de quando pusemos nossos pés na Itália, cruzamos o trecho de Costamezzana a Fornovo. Já estávamos bastante acostumadas umas às outras, noves fora as brigas.
Nossa Brancaleoni – com i – não era trapalhona como o famoso personagem do cinema, nem seu batalhão era maltrapilho como foi o exército das telonas. Tínhamos tudo de boas marcas, mas ainda assim não passávamos de mulheres sem glamour e grana, sem sapatinhos de princesas e muitas vezes com uma fome incontornável.
Vocês terão fortes emoções se refizerem conosco o caminho por onde marchamos com bravura quase dez dias antes do fim de nossa missão na Itália.
Estamos a caminho de Fornovo, conhece? Foi a cidade onde a Força Expedicionária Brasileira rendeu a Divisão Alemã e a Resistência Fascista na 2ª Guerra Mundial. Brevemente pisaremos o chão onde os pracinhas brasileiros foram heróis e provavelmente seremos carregadas no colo ao chegar, dada a glória da histórica batalha vencida por eles! Nossa expectativa é grande: como seremos recebidas lá tantos anos depois do memorável confronto, nós, as brasileiras do incrível exército de Brancaleoni?
Alguns quilômetros antes de chegarmos à cidade, tivemos uma clara demonstração do que nos aguardava. Ao nos identificarmos a uma família local, fomos convidadas a descansar em um haras. A Stefania cercou-nos de cuidados e serviu-nos o verdadeiro parmesão de Parma, água com gás, café, pães caseiros e uns frios bem finos, além de chocolates. Saímos de lá para nossa marcha mandando beijinhos e abraços para nossos anfitriões. Pura fama, como não convém a graves soldadas.
Seguindo nosso caminho, ladeamos por um bom tempo um rio poluído e seco e passamos por uma grande cervejaria desativada, até que um espinho furou o pé de uma de nós.
Como o espinho conseguiu atravessar o forte solado da bota? Suspeitamos, refletimos com nossos altos QI e entendemos que aquele caminho ainda estava cheio de truques e perigos desde a 2ª Guerra! Macacos nos mordam! Por sermos o máximo, provavelmente desviamos instintivamente das armadilhas e bombas armadas naquele bosque para nos capturar, restando só o ataque do espinho.
Não desanime com isso porque nós, destemidas, bravas, brasileiras, misses daquelas estradas de terra, vencemos tudo, tiramos o espinho do pé, seguimos em frente, tomamos suco e agora estamos nos aproximamos de Fornovo! Cruzamos a bela ponte sob um enorme rio seco e adentramos na praça de Fornovo como se fossemos heroínas. Mas…
Cadê as trombetas?
Os habitantes não deram as caras. “Uai”, diriam os mineiros.
Obviamente estavam entrincheirados em suas próprias casas e comércios fechados, espionando e temendo a corajosa divisão feminina brasileira do incrível e famigerado exército de Brancaleoni! Era dia 8 de julho de 2017 e o termômetro marcava 42ºC, com sensação térmica de 50ºC.
Não nos intimidamos pela cidade fantasma e atravessamos com vigor sentido Respicio, especificamente onde décadas antes ficava a divisão alemã.
Castigadas pela sede, sob um sol que não remete em nada ao frio congelante sofrido pelos pracinhas, fomos arrastando nossas mochilas com frutas compradas na promoção. Seguimos pela estrada deixando para trás e para nunca mais a cidade de Fornovo, a única do trajeto que não conhecemos por dentro.
O asfalto mole grudava nas nossas solas e soltava grandes ondas de calor. Do acostamento víamos os motoristas de carros que passavam em alta velocidade, com cara de quem se pergunta onde guardávamos nossos canhões… Na mochila, claro, onde mais?
A paisagem já se convertia na da Toscana, mas a beleza não estava amenizando a fome, a sede, o cansaço e a moleza do calor desértico. O caminho não tinha sombra e não dava trégua. A água do reservatório estava entrando em ebulição. Comandante, o que fazer?
“Vamos parar todas, tirar nossas meias e pôr nossos pés para cima”, disse a certeira Renata… e obedecemos.
É isso que se faz na guerra: põe-se os pés para cima, não sabem?
Achávamos que o alvo Respicio era mais perto… ou será que nossos mapas estavam errados? Se fosse isso, não chegaríamos nunca! Que roubada, o que fazer? Pensamos um pouquinho com nossos miolos moles e, de tão sensacionais que somos, logo montamos a estratégia de deixar Respicio de lado e seguir direto para o alojamento de dois andares reservado pelo Booking, que tinha sinalização na estrada. Vamos deixar essa história de guerra pra lá.
Resolvido!
No entanto, o cansaço permanecia, por isso, de novo consultamos nossa suprema capitã Brancaleoni sobre o que fazer. Solene, de blusa justinha amarelo Brasil, ela virou-se para a cabo Adriana com aquele charme das protagonistas:
“O que você decidiria, cabo Adriana, se estivesse liderando esse exército?”
“Pararia a tropa na gelateria, senhora”.
Só inteligência pura para ter tamanha sacada naquele momento. Obedecemos, mas, se por um lado lá tinha gelato, banheiro e água fresca, por outro tivemos de falar grosso e mostrar nossa excelência moral, estratégica, física e espiritual para aquele soldado raso que nos atendia fazendo cara feia.
Vencida mais essa batalha, passamos nossos protetores solares, gloss – não sem antes tirarmos uma selfie – e marchamos para a pousada… ops… acampamento.
Quando já tínhamos espertamente tomado nossos banhos, atualizado o Facebook, lavado nossos uniformes na máquina e contado carneirinhos, fomos servidas de um jantar regado a vinho vinagrado, torta com pimentas fortes e inteiras, salada mal temperada e um macarrão “vá lá”. Após a sobremesa frugal, bradamos de mãos dadas nosso grito de guerra (Por hoje chega!!!) e caímos nas camas fofas.
“Amanhã vai ser outro dia. Essa batalha foi vencida!”, decretou a cabo Adriana.
Pensando no risco que corremos de termos sido envenenadas no jantar, uma de nós trocou mensagens com o primo Douglas, confessando em tempo real as agruras da guerra e sobre estarmos coogitando desistir de tudo, pois para o dia seguinte estava prevista a perigosíssima subida dos Apeninos. Ele não se conformou e decretou:
“Prima, diga a todas que subam os Apeninos. Vocês são integrantes do incrível exército de Brancaleoni e não desistem nunca. O Brasil torce por vocês.”
Dá arrepios só de lembrar. Com essa injeção de ânimo, na madrugada seguinte lá estávamos nós na estrada de novo, gatas de botas, subindo a ladeira.
A coisa mais linda de se ver!
Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora
Este delírio é a primeira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Costamezzana-Fornovo, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora.
jun 03 2018
Histórias de peregrinas pedem passagem
Sempre ouvimos dizer que pescadores exageram as histórias que contam, mas eles perderão o posto em breve. O motivo: somos um grupo de peregrinas que começará a publicar aqui no Palavreira a série de histórias “Pé Dá Letra“, sobre o bate-perna que fizemos na Itália em 2017. Zanzamos cerca de 750 km basicamente por áreas rurais de lá e, convenhamos, nem sempre acontecem coisas tão incríveis em um trajeto assim… O jeito vai ser dar aquela exageradinha, juntando umas pitadas de invencionices… uma certa licença poética para enfeitar a história real.
Para fazer o “esquenta” da série, o caso abaixo é um testemunho “ponta firme”:
Quando saí da Caixa Econômica Federal – onde trabalhei por 27 anos – no fim de março passado, meu único plano era me ocupar com minha própria reinvenção. Isso não é sinônimo de plástica na cara, não. Comecei a fazer uma mistura de redescoberta, revelação e reconstrução, que ainda seguem. Estas são palavras que começam com “re”, assim como recomeço e Renata. Quem é ela?
Renata, vocês verão, foi a capitã do “Exército de Brancaleoni”. Nem bem me viu soltinha, ela refez o convite para que eu integrasse o pelotão que partiria em junho para andar em uma parte da Via Francígena, que tem cerca de 1.900 km no total. Topei apenas porque não ia aguentar ficar em Ribeirão Preto vendo as fotos delas no Facebook. Para fugir do sofrimento da inveja, passei os dois meses seguintes entretida em treinar e comprar tudo o que era preciso para a empreitada.
A mochila tinha que ter um camel back; a bota precisava ser uma Salomon duas numerações acima da minha; as roupas – segunda pele, fleece, legging, anorak para muita chuva, um vestido, roupa para dormir, camisetas e calça de trilha – tinham que ser levíssimas, como a mochila e o saco de dormir. Lanterna, carregador de celular, toalha de banho, chapéu de peregrina, óculos de sol, uma Havaianas, primeiros socorros… todos estes itens não podiam pesar mais do que 6 quilos, pois na trilha ainda entrariam a água e os lanches de cada dia.
A Regiane, a Renata, a Sheila e a Vera começaram a peregrinar na Suíça três dias antes de mim e da Kele. Elas já entendiam do riscado, ao contrário de nós, estreantes, que começamos em Aosta, na Itália, onde nos encontramos.
Foi aí que foi escrita a primeira crônica desta série, “Nosso Incrível Exército de Brancaleoni”, que sairá na próxima quarta-feira. A Adriana chegou na Francígena alguns dias depois, quase ao mesmo tempo em que a Vera nos deixou. Entre nós havia um homem eletrônico chamado GPS, ou Marcelo, e uma mulher eletrônica, a danadinha da GoPro (se vocês ainda não leram as peripécias da GoPro na crônica Take a Photo, my Love, fica a dica).
Assim, éramos seis mulheres brasileiras que todas as madrugadas partiam com suas mochilas nas costas, andavam o dia todo sem saber como seria a paisagem depois da próxima curva, como seria a próxima cidade em que chegariam, se o alojamento daria certo, o que comeriam, se o banho seria quente, se acertariam o caminho, se o dinheiro ia dar…
O que vivemos foi divertido e quase daria um livro. Talvez esse dia ainda chegue encadernado. Por ora, transformou-se em crônicas sobre histórias vividas de verdade ou apenas em nossas cabeças.
Esperamos que aproveitem. São nossos pés que vão dar as letras pra vocês.
Passo a passo, os pés das peregrinas pedem passagem.
Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora
NOTA DA BLOGUEIRA
A série “Pé Dá Letra” será composta por ao menos dez crônicas de viagem (pelo menos nesta primeira temporada), publicadas semanalmente, sempre às quartas-feiras, a partir de 6 de maio de 2018.
ago 23 2017
‘Take a photo, my love’
MÁRCIA INTRABARTOLLO *
Máquinas têm sentimentos e, ouso dizer, paixões. Não falo por falar, mas porque vi, e tenho testemunhas, a sedução de uma filmadora e fotógrafa americana em cima de um indefeso alemão.
Pobrezinho, caiu na rede dela e fazia cara de gostosão. O moço nem era bonito, até sem graça para meu gosto, com roupas quadradinhas e reações óbvias. Tinha aquela frieza europeia que incomoda bastante minha verve tropical. Mas convenhamos, essas características devem ser sensacionais para máquinas, mesmo para ela que teve certa vivência norte-americana (corre à boca pequena que ela tinha sido fabricada na China e ido de navio para os Estados Unidos, e depois fora exibida em vitrines de eletroeletrônicos com todas as suas partes à mostra, o que presumo deve ter subido à sua cabeça. Ela, vou falar sério, se achava!).
O nome da maquininha miúda e de tecnologia requintada era Gopro. Cá entre nós, a tecnologia podia ser chique mas a própria era escancarada nas sem-vergonhices. Vocês me darão razão.
Para constar, pronuncia-se goupró, e esse é um detalhe importante porque era ensinada a atender comandos de voz. Para que ela tirasse uma foto, por exemplo, devia ser-lhe dito: Gopro, take a photo. E ela agia.
Apesar de minhas restrições, nos coloquemos um pouco do lado dela. Tirada da China novinha, levada para um país estranho e depois para o Brasil de seus compradores, e mais uma vez embarcada com seus donos e amigos para ser praticamente escravizada… Enquanto todos passeavam de bonés, óculos, protetores, ficava ela sob o sol escaldante sem um chapéu sequer trabalhando sem parar, filmando, gravando, fotografando, inclusive à noite. Não tinha vínculos afetivos, não tinha amigos e vida social zero. Carentona. De modo que, ao ver o alemão com aquele sotaque diferente e frio como uma geladeira deve ter achado sexy e se apaixonado. Arrumou então um jeitinho de declarar seu amor.
‘Para constar, pronuncia-se goupró, e esse é um detalhe
importante porque era ensinada a atender comandos de voz’
Convenhamos que havia outras possibilidades: poderia ter caprichado nas imagens dele, poderia ter se jogado no seu colo várias vezes, engripado e feito de tudo para ele vir acariciá-la. Mas nada disso seria tão explícito quanto o que aquela inteligência artificial maquinou.
A paixão acha brechas, cria ocasiões.
Contrariando o profissionalismo que dela era esperado, a Gopro fechou seus ouvidos para todas as outras vozes e só atendia aos comandos do seu amo e senhor, o frívolo alemão.
Espertinha.
O dono da Gopro queria tirar uma foto, dava o comando, ela nada. Duas, três vezes e nada. Chamavam o germânico e ele dizia todo vaidosinho “Gopro, take a photo” e ela, pi pi pi clique.
Assanhada.
Com o tempo ele até brincava: “Gopro, take a photo”, dava um tempo e completava “my love”.
Foi tentado de tudo. Até chamaram um autêntico inglês britânico, que armou sua melhor pronuncia e entonação para dizer várias vezes “Gopro, take a photo”… sem sucesso. A professora de inglês disse “Gopro, take a photo” inutilmente. Só rolava com o alemão.
Faltava pouco para ele assumi-la, carregá-la a viagem toda com ele, quando alguém resolveu atrapalhar a relação. Sempre tem alguma intrigueira, e essa foi realmente perversa. Arquitetou um plano para tirar os holofotes da sedutora filmadora fotógrafa e ainda baixar a bola do alemãozito. A falsa pediu displicentemente para ele falar com a Gopro, e ele atendeu, deu o comando como quem beija. Ela rapidamente deu seus gritinhos delirantes: “pi pi pi” e clique, fotografou-o.
Mas a vilã destruidora de lares gravou a voz do alemão em seu celular. Bruxa, mas tiremos o chapéu para ela.
A Gopro não percebeu nada, coitadinha.
‘a Gopro fechou seus ouvidos para todas as outras vozes e só
atendia aos comandos do seu amo e senhor, o frívolo alemão’
Passo seguinte: perante todos, a vilã anunciou ao grupo. Pessoal, achei uma forma de não precisarmos mais do amigo aqui para dar comandos.
Corta-me o coração lembrar. Ela soltou o som de seu celular e a pobre apaixonada fez “pi pi pi” e clique. Caiu feito uma patinha.
É preciso registrar o despeito do objeto da paixão. Riu sem graça, como se tivesse sido traído. Como se o amor que ele julgava verdadeiro fosse de fato um amor que não sobe a serra. Desiludiu-se. Disse que não falava mais com ela.
Ela encolheu suas asas de sonho e reduziu seu coração de ching-ling a fracas batidinhas. Perdeu o brilho. Viu-se nada mais do que um objeto, abandonada em seu puro amor que não via limites nem pedia muito. Prometeu que para sempre as imagens dele ficariam gravadas nela. Sabe-se que artifícios usará para não ser descarregada.
Assim chegou ao fim o caso de sedução explícito informatizado, robótico, testemunhado, que valeu para provar que o amor é coisa esquisita mesmo, que paira, dá choques e, estando no mundo desde que o mundo é mundo, ainda rende histórias para contar.
(*) Márcia Intrabartolo é jornalista,
escritora nata e amiga do coração
Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.
“VEM PALAVREAR COM A GENTE!“
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