Carmen Cagno*
Abaixou o volume do rádio pra aguçar o ouvido. Eriçou-se – era mesmo. O ruído que vinha do quarto vizinho era sexo. Escandaloso, público, como se 10 da manhã fosse hora praquilo.
Tentou não escutar. Voltou ao rádio e à velha máquina de escrever que não aposentava de teimoso. Os obituários daquele dia… com prazo do jornal até às seis.
Fingiu que não escutava. Encompridou o olhar pra fora da janela, em direção ao minúsculo terraço que dava para o largo. O gradil enferrujado, torto pelo tempo, já emoldurara um dia a fachada art-noveau delicadamente encimada por pequenas e elegantes cornijas. Há muito tempo. Quando o bairro era elegante; quando ele acreditava e a noite acolhia Cadillacs “rabo de peixe” embalando casais encantados pelo cenário trazido lá de Hollywood nas telas do cinema da esquina.
Ele acompanhara aquela paisagem, anos a fio, com o nariz de menino sozinho grudado na janela de vidro embaçado. Homens de chapéu e mulheres bonitas entravam e saiam dos restaurantes e do grande teatro iluminado. Ele imaginando histórias, sonhando, triturando um frio na barriga cheia de adivinhações.
A rua agora era só um arremedo, uma lembrança noturna, derramando a luz amarelada sobre traficantes e prostitutas. Calçadas de silêncio decadente, interrompido às vezes pela sirene da polícia ou os rugidos de uma gangue qualquer.
As samambaias que a mãe insistia, tentavam sobreviver ressequidas naquele território estéril. As samambaias mortas, obstinadas; a mãe obstinada, imortal nos reumatismos, na tossinha irritante, na gororoba que ainda mexia no fogão encarquilhado, todo santo dia, depois de pendurar aqueles panos encardidos no varalzinho improvisado do banheiro.
Da infância, “só-sobrara” o apartamento fincado nesta rua torta e insalubre; sobrara a mãe de nariz cada vez mais adunco. Uma vida impossível, fora do script, amarelada pelo tempo, insistindo naquele cubículo.
Ainda assim olhava pela janela. E fumava, suando no peito sem camisa.
Os mortos. Publicá-los toda manhã, pra alguém ler e comentar “ah, ele era tão bom”, “puxa, ela ainda estava viva?”. Os mortos nas duas colunas que lhe cabiam diariamente no jornalzinho sem-vergonha, emporcalhado de reclames de elixires milagrosos e garotos de programa. Passava no IML, pegava BOs na delegacia, conhecia os informantes do tráfico – o suficiente pra encher as duas colunas e ganhar aquela merda de salário.
Tratou, como já havia aprendido, de se desencantar das lembranças. Fincou os pés no chão ladrilhado e ouviu outra vez. Os dois ali do lado continuavam naquela indecência fora de hora, cheios de espasmos e fluidos. O barulho seco da cama, nhéc, nhéc, nhéc.
Os mortos assombrados com aquela energia tão descabida. Desrespeito, meu Deus; sem-vergonhice das grandes. A vizinha bunduda que cantava boleros feito um rouxinol e se balançava toda no tanque da área de serviço. Ele via, volta e meia. Era ela, a gostosa, só podia ser. Dando pra algum desocupado e ainda gemendo alto.
Depois, a gaveta da cômoda, o revólver do pai, carregado para as eventualidades. Saiu de chinelo mesmo, calção. Abriu a porta do lado e descarregou: uma, duas, três vezes.
Agora podia trabalhar.
Carmen Cagno é jornalista
Escrevo no meu último dia com 45 anos de idade. Sempre dá vontade de fazer um balanço e listar o que ainda precisaria ser feito para sentir que tenho ido em busca dos sonhos. Sonhos que mudam (já não quero mais ter casa própria nem qualquer imóvel no meu nome e nem fazer faculdade de Economia nem aprender a jogar tênis ou virar triatleta). Sonhos que permanecem (ainda quero adotar uma criança e viajar para a Croácia com meu pai e estudar russo). De tudo o que já imaginei na minha vida, nunca achei que no ano 2021, com meus quase 46 anos, eu sonharia com vacina e erradicação de uma doença. Que eu sonharia tanto com isso! Mais um ano em que o bolo será compartilhado só com meus filhos e marido, o que está ótimo. Música e um pouco de dança sozinha, o que sempre faço e nem precisa ser aniversário.
Estudei no mesmo colégio dos nove meses (quando filha única, meu pai observou o grau de colagem da minha mãe em mim e decretou que eu iria para a escola – obrigada, pai!) aos 14 anos, quando completei o que seria hoje o ensino fundamental. E só saí porque a escola parava aí.
Foi no Véritas que aprendi a gostar de ler. A fada que tinha ideias, E o vento levou… o balão de Joaninha, O balão amarelo, O urso com música na barriga, Tonzeca, o calhambeque. Depois vieram A hora do amor, A hora da luta, A droga da obediência, Os pássaros selvagens, O escaravelho do diabo, O cadáver ouve rádio. E foi no Véritas que a professora de português, sem precisar nomear ou explicar o que estava fazendo, me mostrou o prazer em ler, algo sobre o qual agora falo diariamente. Quando estávamos lá, um bando de adolescentes brancos de classe média de uma cidade do interior do estado de São Paulo, reclamando que não estávamos gostando de Capitães da areia, ela soltou uma das frases que marcaram a minha vida: “parem de ler”. A professora enlouqueceu, devo ter pensado, mas ela continuou: “parem ou vocês vão pegar birra do livro e do Jorge Amado e leitura não é para isso”. Apresentou-nos outras opções, escolhemos Cem dias entre céu e mar e não pegamos birra de Jorge Amado. Eu, pelo menos, não peguei. E li e reli Capitães da areia pensando que a professora foi muito sábia. Era preciso mais amadurecimento e mais nariz para fora dos muros das nossas casas e da nossa escola para aquele livro.
Levantei e, enquanto caminhava até a lousa (por causa da minha altura sempre sentei na penúltima ou última fileira), puxei uma amiga que se sentava nas fileiras mais ao meio. Agarrei o braço da menina, ela perguntou o que era para fazer e eu disse “nada, só fica aqui comigo”. A fofa ficou (obrigada, Bianca), firme ao meu lado, enquanto eu, que canto feito uma taquara rachada, cantei a música inteira. A professora puxou os aplausos e eu voltei para a minha carteira, deixando a Bianca sentadinha na dela. Até hoje me pergunto o que passou pela minha cabeça. E agora, pensando enquanto escrevo, acho que foi isso: vontade de compartilhar com a classe algo que achei bonito. Não é o que faço, pensando melhor ainda, nos clubes de leitura? Não é o que faço com o perfil que montei no Instagram (@leituraslucianagerbovic, olha o jabá aí), só para compartilhar com as pessoas os livros que leio? Aquilo de que a gente gosta tanto não merece chegar a mais pessoas?
Ser leitora e escritora e gostar tanto de ficar sozinha. Observar. Ouvir. Pensar. Refletir. Lembrar. Sem nenhuma interrupção. As férias anuais que aprendi a me dar, viajar sozinha para que ninguém interrompa meus pensamentos, que a pandemia me (nos) tirou. Ser leitora e escritora e gostar tanto de ficar sozinha e gostar de estar tanto com gente. Nas salas de aula, nas rodas de leitura, nos cafés, nas livrarias, nas mesas de bares, nos restaurantes, na beira do mar ou da piscina. Que falta as pessoas estão me fazendo! Pensar em uma mesa de bar cheia de amigos e amigas e copos vazios de cerveja e caipirinha e caju amigo chega a provocar uma dor física.
A pele do pescoço e do rosto pinicam. Penso em galinhas. Passo a mão como quem quer espantar minúsculas formigas. Cisco. Vou até o espelho para ver se encontro quem ou o quê me provoca essa reação e não vejo nada além das pisadas, pisadinhas, pequenas marcas vermelhas que poderiam ser deixadas por carrapatos, carrapatinhos. Às vezes incham. E no tempo de um espelho a outro já desincham. Muitas vezes somem, o que me faz duvidar da imagem que vi, poucos segundos antes. Lembro de que uma vez viajei de carro com meus pais e no meio de uma estrada desconhecida, por onde nunca havíamos passado, meu pai precisou fazer um retorno e me perguntou, enquanto olhava para um dos lados: está vindo algum carro desse lado aí?, e respondi que não e imediatamente fui atravessada por uma questão: será que eu vejo o mesmo que os outros? O medo que senti em falar “não” e ser morta em seguida, com meus pais, por um outro carro que nos atravessaria. É possível não ver um caminhão? O verde que eu vejo é o mesmo verde que você vê? E se for azul? E se for flicts? Não verbalizei a dúvida para os meus pais e deu tudo certo com o retorno. E será que tem mesmo alguma picada na minha pele? E coceira? Picada ou espinha? Espinha ou nada? É febre essa quentura que às vezes toma meu rosto? Essa dor no corpo que sinto toda noite quando deito, está aqui? É minha? É dos meus filhos que dormem no quarto ao lado? Por quem eu choro no chuveiro para que meus filhos não vejam? Difícil pensar que todas as pessoas, ou quase todas as pessoas, estão nos dando e fazendo o melhor que podem. Eu também estou tentando dar e fazer o meu melhor, diariamente, penso enquanto choro e tento me dar algum colo, e tudo parece tão pouco. Tão insuficiente. E a cabeça coça. A planta dos pés. Os joelhos incham, como nos dias de adolescência em que eu comia muito doce com corante. Não sei se é dor. Não sei nem se é alergia. Menopausa ou crise de ansiedade? Menopausa e crise de ansiedade? Em vez de remédio li Maya Angelou. Li alto. Li pra fora. Li com o livro na altura dos olhos. Li andando de um cômodo a outro enquanto as formigas escorregavam pelo caminho. Pisei em todas. Não sobrou nada além do silêncio que fica no rastro da poesia.
Em vez disso, saio sorrateira, pego o livro da vez e continuo trancada no banheiro. Quando batem de novo, digo que estou com dor de barriga. E avanço mais um capítulo. Pelo menos algumas boas páginas, ali, sentada no chão gelado. Ganho meus minutos de silêncio, afinal, uma pessoa com dor de barriga deve ser deixada em paz. E saio renovada, pronta para as próximas rodadas. Pronta para esticar as duas mãos a quem me pede. E pronta para pedir a quem tanto me oferece as suas.
Abro a tela em branco e a primeira frase que me vem é: já é sexta, de novo? Isso está tão repetitivo. Mas não está repetitivo, mesmo, desde março de 2020? Ou era 2021? Mudamos para 2022 só nos feriados ou o ano virou e nem vi, como a sexta que chegou e a sexta passada que passou, sem que eu tivesse notado, com perdão pelo trocadilho?
Tenho sonhado em ver a praia novamente, da forma mais ridícula possível, rolando livros na areia e me atirando contra as ondas, gritando de alegria a cada vez que conseguir colocar a cabeça para fora da água, com o biquíni todo desajeitado. E talvez eu abrace o sorveteiro e o vendedor de coco e de milho verde cozido. Talvez eu coma tudo ao mesmo tempo, milho duplo. E raspadinha, as mesmas que comia com meu pai nas férias da minha infância. Ainda tem vendedor de raspadinha, com aquela traquitana de alumínio contendo um bloco de gelo enorme?
Da minha avó paterna me lembro da caderneta de telefone. A letra M, de mãe, a mais cheia: “mai du Iduardo”, “mai da Ligia”, “mai da Zaide” e por aí ia. O espaço para a letra V também era disputado: “visinha du Zezinho”, “visinha da Silvia”, “visinha da Angelina”. “Ô, vó, essas mães e essas vizinhas não têm nomes, não?”. A gente ria – eu ainda não sabia que as oportunidades não são as mesmas para todos. Minha avó, sabiamente, dava de ombros. A avó que veio criança do reino da Iugoslávia, que teve os documentos falsificados pelo pai para ficar mais velha do que seus dez ou onze anos e poder trabalhar nas tecelagens da Mooca e que justificava os erros de ortografia na caderneta com a frase que ficou famosa na família: é que eu estudei na Europa. A gente ria. “Ué, tanta gente acha chique falar que estudou na Europa, eu também estudei, e daí?”. E chegou a nos mostrar uma foto da Vela Luka, um prédio mais largo que alto de frente para o mar, para o qual ela apontava: essa aqui foi a minha escola. Por um ou dois anos apenas, mas foi a escola dela. Foi toda a escola que ela frequentou a vida toda. O meu avô paterno, o único que estudou além do que seria um primário. O menino que morou na rua por tantos anos, fugido de casa, quem diria, voltou como mecânico de aviação. Mas só me lembro da letra dele em palavras cruzadas. Nenhuma letra ao lado da outra até formar uma palavra. Nenhuma palavra ao lado da outra para formar uma frase. Nenhum cartão.
Estou com medo e não encontro palavras e literatura que dê conta do meu pavor. Preciso andar, movimentar meu corpo para que o medo não me paralise, mas são poucos os passos da sala até o quarto e até a cozinha e de volta para a sala. E as crianças, quantos anos estão perdendo? Quantas são as pessoas chorando todos os dias? Mãe pelo filho, irmã pelo irmão, marido pela esposa, esposa pelo marido, sobrinha pela tia, primo pela prima, amigo pelo amigo, filha pela mãe, filha pelo pai, médico pelo paciente, só o presidente não chora por ninguém, e essa semana, enquanto caminhava por uma rua de casa até a farmácia pensei em escrever sobre os cacos de vidros na calçada, uma garrafa de cerveja esmigalhada, e um rapaz de olhos negros brilhantes e sorriso de dentes brancos sentado ao lado, caixa de balas no colo, sobre os dois cachorros que se aproximaram e meu pavor de o vírus voar e comer os meus pulmões, e comprei todas as balas, e de novo e de novo e de novo o pânico, e abracei meus filhos – ‘não se preocupem com as capitanias hereditárias e a raiz quadrada de dezesseis e o número pi e as capitais do país porque tudo se pode aprender sempre se estivermos vivos’ não é bem isso, não penso mesmo que seja bem assim, mas agora quero que seja, preciso que seja, ‘se deus me chamar não vou’ foi o livro da semana, a narradora com a mesma idade do meu filho mais velho, e quando nós deixamos de nos espantar com o mundo e com a natureza? Onde estão nossos olhos com onze anos? Abraço meus filhos mais do que sempre abracei até hoje, se pudessem voltar para o meu útero até o mundo todo ser vacinado, e eu voltar para o útero da minha mãe, e somos nós que parimos o mundo, vamos voltar, uma xícara de chá e outra de café e um brigadeiro no meio da tarde e um choro no banho e mais um capítulo de Harry Potter antes de dormir e sonho que posso voar e acabar com o vírus com uma varinhada. Vamos ficar bem, mãe? Vamos ficar bem? Meus onze anos. Onde estão os meus onze anos?