por Raul Otuzi
Com o meu indefectível figurino branco e um chapéu exibicionista que mais parecia um sombreiro, eu estava cavalgando solitário, dedilhando com destreza meu violão e cantando: “Cool Water”.
Um dos irmãos Coen falou que estava muito à vontade, cheio de empáfia.
O outro completou:
- Hey, Buster, cuidado. Toda esta confiança pode acabar. Assim como a vida, a sorte não é eterna.
Dei de ombros, troquei algumas palavras com o público, cheguei à cidade, matei uns cowboys mal encarados e puxei outra canção. Agora um misto de show e catarse, em cima do balcão: “Surly Joe. Surly Joe”.
Um dos Coen:
- Não se empolgue tanto, Você não é a Lady Gaga, não está em um musical, isso aqui é um faroeste. Sangrento, tenso. Para de ser cínico.
O outro Coen:
- Verdade. Baixa a bola. Nenhuma de suas músicas vai para o Oscar. A indicada será “When a cowboy trades his spur of wings”. E mais: apesar do seu nome batizar o filme, temos mais cinco contos. Um melhor que o outro.
-
Cala a boca! – gritei – puxei meu revólver e…
Uma página gigante de livro encerrou minha história. Voei para longe.
….
O sonho continuou. Do alto, vi um ladrão de bancos em apuros. Ele se parecia muito com o ator James Franco. Mas não tenho certeza. Será que era ele?
Tudo foi muito rápido. A porta de banco se abrindo, o close nas botas e esporas, a conversa pouco amistosa, a reação quase instantânea, o tiroteio desvairado, o assalto frustrado. A captura, a sentença, o pescoço, a corda. Cavalos, índios, gritos, flechas.
No meio de tudo, antes, o velho funcionário do banco vestido com uma roupa/couraça feita de panelas. Comecei a rir. Santo Batman, quanta criatividade para se defender. Esses irmãos Coen são hilários, pensei.
….
Então apareceu uma charrete. O tom ficou sombrio. Uma farpa melancólica beliscou meu coração. Senti pena do viajante Liam Nesson e a sua atração de circo, um cara sem braços e pernas. Ah, impossível não lembrar de “Encaixotando Helena”, o filme de Jennifer Lynch.
Desci dos céus e comecei a escutar as histórias do garoto circense.
É incrível coma a vida pode ser miserável e valer menos que uma galinha.
Confesso que senti um nó na garganta.
Senti os Coen bafejando ao meu lado. Uma cortina de escárnio.
…
Nem tive tempo de me recuperar e começou mais um conto. Um velho começou a cavar, cavar, cavar. Era Tom Waits.
- Ei, o que você está fazendo aqui, cara? Você é cantor. E isso aqui não é um musical – eu disse para ele. – Não seja ridículo.
Tom não me ouviu, estava mais ocupado brigando com um bandido que tentava roubar o ouro que ele finalmente havia encontrado depois de fazer inúmeros buracos no solo maltratado.
Eu pensei em ajudar o Tom. Mas um dos Coen me impediu, antevendo minha interferência.
- Buster, sua participação no filme já acabou. Fica quietinho, só assistindo.
Cerrei os dentes. Esse caras ainda vão ter o que merecem!
….
Caravana. Uma jovem endividada e sem ninguém no mundo encontra um protetor inesperado. Rá… já era tempo, manos Coen. Até que enfim, uma história de amor.
Peguei a pipoca, uma dose de uísque e delirei antevendo (depois de alguns percalços, é óbvio) um final feliz.
O roteiro era claro: após extremas desilusões, um romance delicado e tórrido se desenharia no meio de uma paisagem deserta, preenchida pelos latidos insistentes do Presidente Pierce, o cachorro que a jovem Alice havia herdado do irmão morto.
Não é que sempre pode haver esperança? – Refleti, sentindo o cheiro de poeira e poesia.
- Talvez – um dos Coen me cutucou – Não esqueça que você não está em um musical. Isso aqui é um faroeste. Um faroeste!
….
Último conto. Mesmo sendo Buster Scruggs, um astro, eu não sabia o que esperar. Eu deveria saber antes, me indignei. O que seria? Outra piada ácida? Veio um suspense. Cinco personagens conversando dentro de uma carruagem. Mais uma viagem. Já reparou como estamos sempre tentando chegar a algum lugar? Por que não sossegamos o facho e ficamos quietos, aproveitando onde estamos? Por que temos que estar sempre em movimento? Começando uma nova jornada? Experimentando novos caminhos? Por quê? Tantas dúvidas.
- Chega! Quero um duelo! – Desafiei os irmãos Coen – O mundo é pequeno demais para nós três, quer dizer, dois.
-
Um duelo, seu idiota? Apesar de indizíveis, somos duas almas distintas – Joel e Ethan mostraram os dentes.
Antes que tivesse a chance de sacar meu reluzente revólver, senti meu peito ausente, formigando quente. Levei minha mão até ele. Molhei os dedos, docilmente.
A última coisa que pensei foi: Quem é Joel? Quem é Ethan? Nunca sei quem é quem. Acho que nunca saberei.
Ouviu um sopro distante:
- Desde que continuem nos fazendo sonhar assim, isso importa?