De chocolate com pistache foi meu brioche do café da manhã. Um abuso! Mas era ele ou a fome. Depois me perguntariam se eu tinha perdido peso por andar 700 km, mas de que jeito se emagrece comendo essas coisas?
Poucos minutos antes, 6h30 da manhã de um domingo, éramos vistas paradas em uma esquina da cidade de Pavia, com nossas mochilas e chapéus, sem perspectiva de encontrar um lugar onde tirar a barriga da miséria. Quem, em um domingo europeu de uma cidade turística relativamente pequena, abriria uma cafeteria ou padaria àquela hora?
A brasileira metade holandesa que estava conosco alertava que tínhamos errado o planejamento e por isso estávamos naquela penúria. Aliás, parêntese para dizer que os europeus têm fama de nem sempre trabalharem aos domingos e ainda fazem sesta diariamente!
Estávamos com um problemão, pois como poderíamos seguir até a próxima cidade se saco vazio não para em pé? Tínhamos bobeado no dia anterior vendo uma apresentação musical na praça e, quando chegamos ao mercado, estava fechando as portas.
Por isso, quando ouvimos um barulho de motor e vimos a porta de ferro de um bar chamado Room 46 se abrir automaticamente à nossa frente, nos sentimos agraciadas por um milagre. Tínhamos parado por acaso naquele endereço da Via Dei Mille.
O lugar tinha cara de “night”, mas ele se abriu, e por causa disso esta crônica ganhou aroma de café, baunilha e pistache. Ah, e ela também está levemente mais aquecida pelo calor do forno, que também derreteu as defesas do meu corpo.
Chegue mais perto da tela para sentir que aroma!
Eu, tão acostumada a um pão com manteiga e café com leite no café-da-manhã verde e amarelo, vi uma vitrine cheia de brioches, e isso foi tudo o que passei a desejar: a delicada doçura daquelas iguarias de chocolate, pistache, baunilha, frutas vermelhas ou mesmo sem recheio, à escolha do freguês.
A vontade de encher minha boca com aquela iguaria tomou conta de todos os meus órgãos, que faltaram congelar naquele único momento de desejo de um sabor doce, quente e com certo tom de canela.
Disputávamos entre nós mesmas a vez de fazer o pedido no balcão daquela cafeteria alternativa.
Pedido feito, nos sentamos ansiosas nas cadeiras pretas da mesa preta, no bar moderno de parede de tijolos à vista e iluminação amarela, como crianças esperando um pedaço do bolo de aniversário. Nossos pedidos foram trazidos aos poucos, desobedientes à ordem em que foram feitos.
Primeiro veio o pedido da Adriana, o leite quentinho, o brioche cheiroso… Dissemos: “pode começar, Dri”, e ela começou, bem diante de nossas lombrigas e olhos esbugalhados.
Depois veio o da Renata. Ela se ajeitou na mesa ritualisticamente, esticou o pescoço e foi levando aquela delícia até a boca em câmera lenta.
Virei meu rosto e vi chegando mais uma bandeja. Eram os dois brioches da Kele, mais seu café ao leite. “Podem se servir, meninas”, ela dizia, mas nós sabíamos que aceitar significava devorar e seguramos nossa onda. Ela partiu seu brioche ao meio e vi escorrer dele o chocolate derretido… ai… e parece que ao fundo ouvi sua voz dizendo “vocês vão me desculpar…mas vou comer, então”. Coma, Kele!
A Regiane levantou-se nervosamente. Estava difícil lidar com aquilo. Foi ver o que estava acontecendo com o pedido dela. Voltou vitoriosa. Tinha tomado posse da sua bandeja e do pedido da Sheila. Agora só faltava a minha.
Eu tantas vezes vi gatos aos meus pés querendo o leite denunciado por aquele faro deles, os miados nervosos, mas eu não dava. Agora, de castigo, eu era a gata (auto-elogio) ronronando pela comida que o garçom não trazia para mim.
Aí chegou o meu pedido. O lugar estava cheio de senhoras conversando e de solitários, e a TV anunciava alguma coisa sobre o Hitler… Olhei para aquilo à minha frente e fechei os olhos para sentir. Vegetarianos têm olfato muito bom. Depois vi que a Adriana e a Renata me observavam. Dei um gole no café e então mordi meu brioche de chocolate com pistache. Um abuso! O melhor da vida. Foi um daqueles sabores que entraram na minha lista.
Infelizmente, não tínhamos tempo para mais um.
Agora precisávamos andar até Santa Cristina e, antes, encher os camel-back. Achamos uma bica no mesmo ponto onde tínhamos chegado no dia anterior de Garlasco, após andarmos por muitas horas às margens do rio Ticino. Agora o atravessávamos pela ponte Coperto, que divide a parte turística de Pavia de onde nos hospedamos.
O sol suave anunciava um dia lindo e a cidade ainda estava se levantando. Andamos por suas ruas silenciosas. Era mesmo uma cidade muito agradável! Sua luz ficou na memória, com o sabor doce e o brilho do rio.
Pavia, não saia daí. Um dia eu volto.
Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora
Esta é a sexta crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Garlasco-Pavia, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora.
Clique no link para ler a crônica anterior, O aniversário da princesa Kele.
2 comentários
Que delícia de crônica! Parabëns, Marcinha, senti o aroma e imaginei o sabor! Vc é ótima! bj
Uma delícia reviver essas histórias e esses sabores! Eu, a mais gulosa da turma, já começava o dia com tudo em dobro, mas a alegria e o prazer de estar nessa empreitada, eu sempre dividi com vocês!