Escrevo no dia do meu aniversário de 45 anos. Penso em partida de futebol, no apito que anuncia o final do primeiro tempo. O primeiro aniversário, e espero que único, passado em meio a uma pandemia que exige isolamento (no Brasil, por conta da consciência de cada um) social. Ver meus pais pela tela. E agradecer por ter meus pais do outro lado da tela. Mesmo que meu pai ainda esteja no hospital. Nesse andar também nascem bebês, minha mãe me conta, ainda que ela não saia do quarto onde está com o marido. Mas saber que há bebês é tão bom. É, mãe, é tão bom. Lembro do bebê de uma amiga, que conheci essa semana, também pela tela. Quando eu me tirar do isolamento, já que no Brasil é cada um por si – Deus acima de tudo, desde que o Diabo não atrapalhe -, não quero mais amigos pela tela.
Pelo rádio, enquanto escrevo, ouço a voz de Elis, “vivendo e aprendendo a jogar”. É, “nem sempre ganhando, nem sempre perdendo”, e o juiz apitando no meu ouvido. Nenhum cartão vermelho, alguns amarelos. Penso em “Encontros e despedidas”, “todos os dias é um vai-e-vem”, meus pais lá no hospital, onde também nascem bebês, eu em casa em busca de um raio de sol na mesa da cozinha, meus filhos na sala, o mais velho que acabou de vir até mim para me dar um beijo e dizer “mamãe bonita”, como ele faz várias vezes por dia. Tenho a sensação de que, quando estiver com o ninho vazio, é das vozes infantis que mais sentirei falta. “Mamãe bonita”.
O gato que chega e resolve se instalar sobre o teclado. Todos em busca de alguma quentura. A temperatura caiu muito essa semana, mas já estava frio lá fora. Há alguns meses. Terminei de ler Frankenstein, da Mary Shelley, essa semana. De quantas coisas falamos só de “ouvir falar”, sem saber exatamente do que se trata? Se ouvíssemos mais e falássemos menos… Frankenstein era uma dessas coisas para mim. A criatura sem nome, que passa os dias em busca de escuta. “Escute-me”, é só o que ela pede. Assim como meu outro gato, que mia aos meus pés. Assim como as crianças na sala que me chamam. Assim como mais uma menina negra baleada na cabeça.
Gosto de ouvir minha mãe contar sobre o dia em que nasci, assim como meus filhos gostam de ouvir sobre o nascimento deles. A história de cada um. A criatura de Frankenstein, como tantas criaturas criadas pela elite brasileira, sem ninguém para ouvir sua história. Nós somos as nossas histórias, a Michelle Obama disse isso e eu concordo. Não, não somos só as notas que tiramos nas provas. Somos tão mais. Mi nha mãe, que conta que ficou admirada ao ver meus olhos arregalados logo que me levaram para o colo dela. Ela esperando um repolhinho de olhos fechados e chega uma menina com os olhos bem abertos. Também conta que cheguei virando a cabeça, como se já quisesse entender onde estava. Acho que esse susto inicial, tão visível para minha mãe, nunca me abandonou. Sigo até hoje arregalando os olhos e virando a cabeça para tudo tentar enxergar. E entender. Acho também que enxergo muito, mas ainda entendo pouco. Talvez não vá mesmo entender. Mas uma coisa eu aprendi: a gente quer é escuta. Que no meu segundo tempo eu possa continuar com os ouvidos abertos. E que possa encontrar ouvidos dispostos também. Afinal, se olharmos lá no fundo, no fundo mesmo, queremos todos as mesmas coisas.