Não falo do fio dental odontológico que usamos diariamente, do fio da navalha e nem da música do Jorge Benjor inspirada em um jogador de futebol. Mas já que toquei neste assunto, vou aproveitar a deixa e revelar em primeira mão que o doutor Sócrates participou de nossa aventura na Itália.
Sim, ele estava lá. Segura esse lance!
Muitas vezes nos perguntavam de onde éramos: Do Brasil, de Ribeirão Preto. “Não conheço”. De São Paulo. “Oh, é uma cidade muito violenta!”, diziam.
Até que um dia veio o insight de falar na linguagem do futebol. Quando questionada de onde éramos, devolvi perguntando se meu interlocutor conhecia o jogador Sócrates. “Sim, claro, ele jogou na Fiorentina!”, respondeu o homem com o olhar brilhando. “Somos da cidade dele, Ribeirão Preto”. Funcionou tanto que depois de um tempo já respondíamos direto: “Somos de Ribeirão Preto, cidade do Sócrates”.
Esse “fio maravilha” da nossa cidade nos aproximava dos italianos.
Feito o desvio, volto ao fio desta crônica, que foi visto em nosso alojamento de Point Saint Martin, o único que oferece lavatórios para os pés, uma espécie de pia de chão cuja ducha suaviza as dores. Depois deste banho é que se cuida das bolhas e faz-se os curativos.
Se já está pensando que passamos fio dental nas bolhas, engana-se. O caso é outro, e para contá-lo, apresento seu protagonista, um dos italianos que adoraram saber que éramos conterrâneas do Sócrates. O nome dele é Jácomo.
Ele era um avô de uns 65 anos, que dividia a vida com a mulher, Pepina, com quem percorria a pé parte de seu país, sempre que podia. Nos conhecemos no trajeto cheio de apiários entre Vèrres e Point Saint Martin, que incluiu nossa visita ao maravilhoso castelo de Barbi, locação do filme “Vingadores: A Era de Ultron” (2015). Andamos juntos mais à frente outras vezes.
Enquanto redijo essa grande explicação, as outras peregrinas estão relaxando em suas camas no fim da tarde, à espera da Regiane voltar do vestiário feminino plenamente embelezada, para depois irem jantar. É quando a própria abre a porta, com a pressa de quem foge de um fantasma zombeteiro. Com cara de criança, o corpo dobrado para frente, ofegante, sussura atropeladamente coisas do tipo “vocês não vão acreditar”.
“O que houve?”
“É que eu vi o marido da Pepina de cueca.”
“De cueca? Uia, que folgado de andar por aí assim!”
“Ele estava indo do vestiário para o quarto deles…”
“Também não é para tanto estardalhaço, Regiane, menos…”
“Eu nem consigo falar de tão surpresa!” – ela ria como se fosse proibido rir, sabe?
“Mas surpresa com o quê, nunca viu homem de sunga no clube?”
“É que a cueca dele era fio dental! Cuequinha preta e fio dental!”
Ohhhh!
“Ao vivo eu também nunca vi homem de fio dental”.
“Nem eu…”
Ela conta que passava pela área de convivência quando percebeu alguém andando do outro lado, já pertinho do quarto do casal. Olhou para ver quem era e cumprimentar… e foi aí que viu. Ele nem fez menção de se cobrir, disse “ciao” e entrou no quarto tranquilamente.
“Não esquenta, Regiane, aqui eles não tem esses pudores como a gente lá no Brasil”, explica Renata, a viajante internacional.
Nós ficamos como abelhas zunindo.
É público e notório que os italianos são sedutores (apesar de que não cruzamos com nenhum daqueles homens dos filmes por lá. Só um, lembrando bem, ou dois, transitando pelas cidades). Nos grandes centros, eles se vestem de calças justas, barras dobradas deixando aparecer os sapatos – um pula brejo cool. Falam com as mulheres olhando muito diretamente nos olhos, e tascam seus “piu bela” a três por quatro, quando não estão de cara amarrada, o que é bem comum.
Mas para nossa cultura pseudo libertária e tecnicamente conservadora, nosso brasilianismo machista em que só as mulheres podem e devem ser sedutoras, nossa cultura de apego à juventude e à beleza, em que a feiura e velhice excluem outros méritos – sensualidade entre eles – ver o sessentão de fio dental pretinho soou inusitadíssimo.
No jantar, livres da possibilidade de sermos ouvidas, rimos ainda mais da situação, da surpresa, da novidade, como crianças quando vêem algo que é proibido. “Não pode falar palavrão, menino”. E ele fala. Faz chacota, ri, se rebela. Se as mulheres lutaram tanto pelo direito de usarem calças, por que criticariam o homem que usa saias ou fio dental?
É esse o fio maravilha dessa história, sobre o qual equilibraram-se nossos preconceitos e curiosidades naquele dia, na pacata cidade que nem deve ter jogador de futebol de peso. Ainda mais um jogador mundialmente famoso e que promoveu a democracia no futebol.
Pensando bem, ver com naturalidade o fio dental masculino é um ato de democracia.
Nos dias seguintes, ainda cruzamos algumas vezes com o Jácomo e a Pepina, sempre simpaticíssimos, de bom papo, ambos prestativos, vestidos com suas calças de trilhas.
Viraram musos.
Olhávamos para ela e imaginávamos (sonhávamos, seria mais justo dizer) que talvez ela estivesse de corselet e calcinha de renda vermelha por baixo da roupa de viagem, subvertendo a ordem estabelecida de mochila exígua. E pensávamos no quanto a vida sexual deles devia ser divertida. Eu, especificamente, refleti muito sobre minha calçarola da vovó.
Para você ver que nesse mundo a gente sempre pode pensar no contrário do que é, sempre pode fugir das ditaduras sem sentido.
Isso não pode. Não mesmo?
Sou inteligente. Sou mesmo?
Vivo presa. Vivo mesmo?
Para você ver que nem tudo é tão reto quanto pensamos.
E ver que perder, e depois ganhar, para de novo perder, e mais uma vez ganhar, é um dos melhores regalos que essa viagem nos dá.
Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora
Galeria (clique em qualquer foto para ampliar)
Este fato real é a terceira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Vèrres-Point St Martin, onde aconteceu a história de hoje, visite o Peregrinas Mundo Afora.
Para ler a crônica anterior, Sobre Coisas que Dão na Barriga, clique aqui
2 comentários
Parabéns Marcinha. Mais uma criação excelente. Me senti na hospedagem vendo o Jácomo de fio dental e a Pepina, de roupas íntimas vermelhas , saírem para a caminhada, sorridentes e com ar de satisfeitos.. ????????
Autor
Viu? Que legal, Claudia, que bacana! Queria saber como eles ficariam se lessem essa história! Obrigada pelo apoio e pelo carinho!