CARMEN CAGNO **
Íamos os três apertados no banco da frente do Gordine. Eu no meio, meu amor dirigindo e o amigo poeta do outro lado. Abraçados, cantávamos alguma coisa do João Gilberto. E mais uma vez transgredíamos. Minha família proibira aquele namoro fora da caixa. Afinal, ele era músico e nem de longe se assemelhava a um dos inúmeros “bons moços” indicados para uma adolescente burguesinha.
Eu devia ter 16, 17 anos e desde que me lembrava sempre estivera fora da caixa.
O que não dava pra explicar aos que estavam do lado de dentro era a felicidade, a liberdade daqueles dias. Amávamos intensamente, descobríamos o desejo a cada minuto, nos perdíamos em poesia, encontros musicais e corríamos num raro fio de sensibilidade e encantamento.
Eu escrevia versos nos guardanapos de papel em cada um dos barzinhos que frequentávamos religiosamente, inaugurando a sagrada devoção à boemia. Noites inteiras de papo, música, trocas, laços cada vez mais apertados.
Esses eram nossos rituais sagrados. Desistira da religião havia alguns anos, desde que minha avozinha querida e profundamente crente não conseguira me explicar por que eu devia me enfiar num confessionário semanalmente para falar de pecados que não tinha. Por que não podia me entender diretamente com aquele Deus tão onipresente.
Compor músicas, entregar-me sem culpa ao desejo que pulsava, cultivar com carinho cada pequeno pedaço de afeto. Tínhamos uma alma limpinha e ainda não havíamos experimentado as dores de sermos tão humanos.
Isso foi antes da política, da ida pra cidade grande, do fecundo percurso profissional, da independência, da formação intelectual, da repressão política, das passeatas aos gritos de liberdade, dos amigos mortos e torturados, do mergulho em outros amores, da vida que continuaria pulsando e me entregando presentes cada vez mais valiosos – para o bem e para o mal.
O caminho tortuoso, cheio de surpresas e descobertas, foi uma escolha natural, orgânica, sem a segurança previsível dos que seguiam pela estrada principal – aquela asfaltada, reta, certeira, povoada de setas e avisos, com destino conhecido. Mergulhar para dentro da vida sem paraquedas era criar asas cada vez mais poderosas; era o frio na barriga e, às vezes, um tombo cheio de arranhões e cicatrizes. Mas nada nesse mundo valia a emoção do voo. Nada descrevia a sensação de planar e descobrir paisagens.
Hoje eu olho pra trás e abençoo essa narrativa que tem contado minha vida. Na maioria dos capítulos continuo a construir uma história meio na contramão. E agradeço diariamente por esse privilégio quando olho pra minha filha e me orgulho do que vejo; quando abraço meus amigos que percorreram esses caminhos; quando me entrego a um amor com a inocência e a inteireza que sentia no banco da frente do Gordine, há mil anos atrás.
Carmen Cagno
Jornalista, escritora, professora brilhante, palavreira incomparável
e amiga querida da vida toda
Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.
‘VEM PALAVREAR COM A GENTE!’
5 comentários
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Aaafff!!! Coisa linda!
Quanta vida pulsante, heim! Muito bom olhar pra trás e ver o caminho percorrido… Muito bom ver onde chegamos e quanto isso nos faz ter mais aonde ir.
Que linda crônica a da Carmen. Como, aliás, todos os textos que ela tece.
Adorei sua crônica, Carmen Cagno. Voltei com você no tempo, eu também “fora da caixa”, naquele Gordini vermelho (era vermelho, não era?) buscando e buscando poesia e vida e arte. Saudade de você, poeta velha de guerra. Te vejo porreta, aos 100, desancando o mundo e os caretas. Milhões de beijos. Obrigada pela dedicatória e pela viagem fora da caixa.
Eu tb tive meu momento gordine rs