Um fusca, um húngaro e sua aldeia tropical

JANICE KISS *

Éramos uma família simples, iguais a tantas outras que viviam na cidade que ainda não havia delimitado suas fronteiras entre o urbano e o rural. Ter fazendas a curtas distâncias da casa, criar sua galinha, plantar sua própria verdura era cena comum de uma Ribeirão Preto dos anos 1970. Hoje tem até nome pomposo para isso, “locavore” – movimento que prega o consumo de alimentos cultivados localmente. Éramos vanguarda e sequer desconfiávamos.

Mas esse nosso quintal diversificado e produtivo não era nada perto do que vi tantas vezes no preferido passeio dos domingos. Quando o Fusca azul, 66, do meu pai pegava a estrada rural que levava (ainda leva?) a Santa Cruz das Posses, distrito de Sertãozinho, eu sabia que nossa hortinha era um nada e que minha criação imaginária de porquinhos era puro devaneio de menina perto da aldeia de Joseph Kiss, o tio Zé, ou o Zé hungarês, como a pequena cidade achou por bem chamá-lo.

Não sei dizer ao certo como tio Zé, um húngaro de cabelos e olhos escuros, foi parar em Santa Cruz. Ele veio da Hungria com sua extensa família antes da Segunda Guerra porque o pai, que havia passado por toda a Primeira Guerra, anteviu que épocas sombrias se aproximavam. Muito tempo depois, conclui que de certo modo ele nunca abandonou a sua aldeia do leste europeu. Apenas adaptou-a aos trópicos, onde certamente produzia boa parte do que necessitava.


‘minha criação imaginária de porquinhos era puro devaneio de
menina perto da aldeia de Joseph Kiss, o tio Zé, ou o Zé hungarês’


Tio Zé tinha um quintal gigantesco, talvez hoje classificado como chácara ou pequeno sítio. Ali havia uma vaca (pois é, húngaros não sabem brincar), um paiol para guardar milho, galinhas com vida digna (em contraponto com a criação de escala industrial de hoje), chiqueiro com porcos (os dele eram de verdade), horta e uma infinidade de frutíferas. Na farta mesa do café, tinha pão, manteiga, queijo e sei lá quantas coisas mais produzidas pela família ou trocadas com vizinhos e amigos – e há quem tenha descoberto o conceito de economia colaborativa apenas agora…

Mas Joseph Kiss jamais se sentava para conversar com os seus. Parava na mesa, tomava uma xicrinha de café e ia debulhar o milho. Voltava, comia um pedaço de queijo e ia ver a água e o sal da vaca. Para conversar com ele, só mesmo o acompanhando na expedição pelo seu universo rural, tentando compreender seu português arranhado. Coisa que apenas gente adulta fazia, como meu pai ou meu avô Alexandre (irmão de José).

Ao modo de uma criança, eu observava atentamente o silêncio dele e o admirava por ser incansável. Muitas décadas depois, essa forma de prestar atenção foi essencial para o meu ofício, muito ligado à agricultura, onde a urgência tem outro tempo e há que se ter uma prosa cuidadosa e sem pressa  para encontrar o que procura.

Quando o Fusca 66 rumava de volta para casa, havia sempre uma parada na beira dos canaviais (às vezes isso acontecia na ida). Meu pai cortava pedaços de cana para chuparmos ao longo do caminho. Nesse percurso foram sendo construídas histórias e memórias, das quais me afastei por muito tempo e hoje volto para elas, na esperança de um dia ter minha própria aldeia tropical. Será que Joseph, que há muito tempo vive em algum lugar desse universo, vai me visitar?

 

* Janice Kiss
Jornalista ligada à agricultura, meio ambiente e ao valor histórico dos alimentos. É ribeirão-pretana, vive em São Paulo e já andou muito por aí escutando e contando histórias

 


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8 comentários

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    • Amalia Percz Pocol em 13 de setembro de 2017 às 16:05

    Adorei,,,,me fez lembrar da minha infância com a família , o lugar gravado na minha memória, fui criada em uma Colônia Húngara , meus paí s vieram para o Brasil em uma1924, ele foi um dos representante da aldeia, nasci neste lugar, Arpad folva ,,,,

      • Janice em 13 de setembro de 2017 às 17:06

      Oi, Amália. Obrigada pelo retorno e por contar um pouquinho da sua história. O mundo ficou tão globalizado que parece que nosso passado é de uma outra era, não é mesmo? Beijos,

    • Danilo Neimeir em 13 de setembro de 2017 às 15:11

    Olá Janice tudo bem? Gostei do conteúdo aqui exposto, pois vivi de forma parecida aqui mesmo em São Paulo com propriedade rural próxima de nós. Estive analisando a ida do seu Tio Joseph para Ribeirão Preto e liguei essa história à do meus avós e bisavós.
    Quando chegaram da Hungria ( Transilvânia), foram morar em Ribeirão Preto . O nome de solteira da minha bisavó era Erzsébet Kiss. Tenho pesquisado a trajetória dos meus ancestrais desde o casamento dos meus tataravós na Transilvânia até os dia atuais.

      • Janice em 13 de setembro de 2017 às 17:09

      Oi, Danilo

      Que bacana! O meu povo também veio da Transilvânia. Não sei se te ajuda, mas meu bisavô (quem idealizou a travessia!) era Karol Kiss e a esposa, Maria Pinter Kiss. O meu avô era Alexandre (veio mocinho) e aqui se casou com Olívia Quaglio, que virou Kiss a contragosto da família italiana dela. 🙂 Será que ajudei?

      • Janice em 13 de setembro de 2017 às 18:53

      Oi, Danilo
      Olha só, acabei de falar com minha mãe e ela disse que o tio Joseph tinha uma irmã chamada Erzsébet Kiss. Lá era virou Isabel, como eu sempre a chamei. Mas ela viveu a vida toda em Sta Cruz das Posses. Será que estamos falando da mesma pessoa? Beijos.

        • DANILO em 23 de novembro de 2020 às 20:19

        Janice. Desculpas pelo tempo distante. como você está? Minha bisa Ergi, viveu aqui em São Paulo em Vila Anastácio. Muita coincidência mas podem ser parentes por terem partido do mesmo lugar.

    • Márcia em 13 de setembro de 2017 às 12:35

    Eu também chupava cana que meu pai cortava em suas viagens e nos trazia no caminhão. Depois se sentava no quintal e ia tirando os gomos, a gente ali na expectativa para pegar o próximo. Delícia de lembrança.

      • Janice em 13 de setembro de 2017 às 17:12

      Não é mesmo, Márcia? Não costumam dizer que a sofisticação mora no simples? Acho que fomos sortudas por essa infância. Beijos.

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