“Infiltrado na Klan”: inteligente, instigante, inspirador

por Luís Fernando Laranjeira     

Além da direção leve e sensível, ótimos diálogos, belíssima fotografia, tomadas que enaltecem cenários e personagens, uma trilha sonora que dá vontade de dançar, “Infiltrado na Klan” (BlackkKlanman, no original em inglês), do genial, polêmico, provocador Spike Lee, leva a algumas reflexões necessárias nestes tempos sombrios de recrudescimento de preconceitos, violência, intolerância, fanatismo, fundamentalismo cego, de proliferação de fake news.

Negro, Lee nos mostra que o racismo não se limita à questão da cor da pele, uma vez que os fascistas militantes da Ku Klux Klan também odeiam homossexuais, judeus e brancos que não pensam como eles.

O racismo sempre foi explícito nos EUA e vem sendo revelado claramente em nossas terras tropicais povoadas por seres miscigenados, onde já não se consegue mais disfarçar, sob uma hipócrita imagem de cordialidade, sua existência histórica. Sempre me perguntei como um país assumidamente racista pode querer se colocar na vanguarda da civilização, como os EUA, de modo arrogante, se colocam. O que há de desenvolvido ou vanguardista no racismo senão a vilania, a ignorância, o sentimento e a sensação de uma falsa superioridade, a incapacidade de aceitar as diferenças? Que sociedade desenvolvida é essa que mal consegue admitir a diversidade? Nesse ponto, Lee põe o dedo na ferida.

“Sempre me perguntei como um país assumidamente racista pode querer se colocar na vanguarda da civilização”

Inteligente, instigante, inspirador, “Infiltrado na Klan” retrata bem os “caipiras” e “jecas” do sul estadunidense que espelham o resto, ou grande parte, do país. Nova Iorque, por exemplo, tida por muitos como a capital do mundo civilizado, é uma cidade dividida em guetos de negros, latinos, judeus, italianos… O que é o Harlem se não o gueto negro da big apple?

Fundada em 1866, no Tennessee, a Ku Klux Klan tem como marca os roupões e capuzes brancos que escondem a identidade de seus membros. No final da década de 1880, chegou a perder força para voltar revigorada em meados do século XX, na Geórgia. A nova doutrina, de cunho nacionalista, pregava o ódio e tinha como alvos os negros, os imigrantes, os católicos, os judeus.

John David Washington é o policial Ron Stallworth no filme

Infiltrado na Klan” é a história de Ron Stallworth (John David Washington), o primeiro policial negro de Colorado Springs, que propõe investigar a KKK infiltrando-se no grupo após receber como primeira missão no setor de inteligência da polícia: “arapongar” um discurso do ex-pantera negra e líder do movimento negro Stokely Carmichael, que adotou o nome de Kuame Ture em homenagem a líderes negros africanos, na Universidade local. Ture é tido pelo chefe da polícia não como um ativista pelos direitos dos negros, mas como um terrorista, assim como os integrantes do MST, MTST e outros movimentos sociais no nosso Brasil varonil dos tempos atuais. Na Universidade, Ron conhece Patrice (Laura Harrier), a presidenta do grêmio estudantil, por quem acaba se apaixonando. Autorizado a conduzir a investigação, Ron tem como parceiro o policial judeu Flip Zimmerman (Adam Driver), que o encarna quando ele é aceito na organização e passa a ser necessário o contato pessoal com os demais integrantes.

O filme começa fazendo referência ao clássico “E o Vento Levou”, de 1939, mostrando a sequência em que Scarlett O’Hara (Vivien Leigh), caminhando entre os corpos destroçados dos soldados sulistas derrotados pelos ianques na guerra civil americana (1861 a 1865), procura desesperadamente pelo Dr. Meade. Corte para o discurso do Dr. Kennebrew Beauregard (Alec Baldwin), tendo como pano de fundo cenas de “O Nascimento de uma Nação” (1915),dirigido por D. W. Griffith, que retrata negros (interpretados por atores brancos com os rostos pintados) sem inteligência e agressivos sexualmente com as mulheres brancas. A cena mostra Beauregard praguejando contra negros e judeus e defendendo a supremacia branca representada pelos protestantes. A fala dá a tônica do perfil ideológico da Ku Klux Klan, denominação que eles evitam, preferindo referir-se à milícia, (opa, ato falho) como a “organização”.

O discurso de ódio mal ensaiado, os diálogos perversos entre os “klansmen” e o gozo histérico dos que assistem ao já citado “O Nascimento de uma Nação”, após uma cerimônia da KKK, bem demonstram a pequenez e a pobreza de espírito, a carência de humanidade, a fraqueza e até mesmo o temor de, eventualmente, eles próprios se sentirem inferiores aos negros. Nesse sentido, a expressão aparvalhada de David Duke (Topher Grace), após ouvir em ligação telefônica a troça de Ron a respeito das diferenças de pronúncia entre negros e brancos, sobretudo quando fala que, além de ignorante e pedante, o líder da KKK tem pau pequeno, é bem ilustrativa.

Spike Lee dirige Topher Grace e Adam Drive

A caracterização do “fake Ron” é especialmente bem construída. Uma mistura da voz do Ron original negro com o corpo do judeu branco. Um mantém conversas telefônicas com a milícia (opa, de novo), quer dizer, com a organização, e o outro se apresenta pessoalmente nos encontros. O “fake Ron” é uma tremenda contradição, pois reúne um negro que tem consciência da opressão contra os negros, mas tem um espírito conciliador e acredita que pode fazer algo para mudar a situação; e um judeu branco que, como ele mesmo diz, não foi criado para ser judeu. “Jamais fui a um bar mitzvah, não tive um bar mitzvah”, afirma, para depois concluir que nunca deu importância aos rituais e à tradição. Isso depois de ter um revólver apontado para seu rosto por um dos mais violentos membros da KKK, que queria obrigá-lo a enfrentar um detector de mentiras e ver se ele era cincuncidado. No diálogo, Felix nega veementemente o holocausto (peço licença e perdão pelo parêntesis, mas não resisto a lembrar que no Brasil de hoje há quem, em postos chave no governo, negam com a mesma veemência e atribuem o aquecimento global a uma trama do marxismo cultural), e Flip diz que os massacres na Segunda Guerra Mundial foram necessários para a limpeza étnica e eliminação dos judeus. Uma cena tensa. Assim como tenso é o próprio argumento do filme. Mas Lee, com sensibilidade e leveza, conduziu a trama pouco explicitando essa tensão. São poucas as sequências explícitas de ação e violência, praticamente restritas aos diálogos. Esses, sim, carregados de violenta tensão. E de ironias também.

“São poucas as sequências explícitas de ação e violência, praticamente restritas aos diálogos. Esses, sim, carregados de violenta tensão. E de ironias também”

Por outro lado, iluminação delicada e a elaborada fotografia, assim como planos e enquadramentos de câmera, dão um tom poético à película. É o caso da cena em que Ron e Patrice caminham por uma trilha margeando um riacho. O cuidado com a iluminação, os ângulos para as tomadas realçam o brilho do sol e criam pontos de luz ao longo do trecho percorrido pelo casal. Linda cena.

Um primor também a música e a coreografia na sequência em que Ron e Patrice dançam em uma casa noturna após a palestra na Universidade, logo no início do filme. Spike Lee consegue com cenas como essas, a da caminhada, em alguns diálogos e situações, amenizar a tensão e a violência que norteiam a trama, provocando até risos.

Interessante destacar também que, paradoxalmente, o chefe de polícia branco fornece as condições para a investigação e até alerta um ingênuo detetive negro que a tática da milícia (ai, meu Deus, de novo), a tática da KKK é infiltrar sua gente na política, ocupar espaços e buscar o poder por meios institucionais (David Duke é hoje um congressista que apoia Donald Trump, por exemplo). Porém, sempre há um porém… Bem, assista ao filme para entender porque o espírito conciliador de Ron Stallworth não encontra tanto eco na realidade.

Enfim, Spike Lee consegue com “Infiltrado na Klan” nos brindar com um filme, ao mesmo tempo, questionador, que denuncia uma triste e cruel realidade, poético, chocante, contundente, que contribui para compreendermos um pouco mais o que se passa neste início de século XXI no Brasil e no mundo. O diretor, inclusive, inclui imagens reais de manifestações violentas que provocaram mortes nos EUA nos últimos anos. Uma obra que merece a estatueta.

 

 Luís Fernando Laranjeira é Jornalista, Mestre em Comunicação e Estudos de Linguagens, fotógrafo, editor e um curtidor da Sétima Arte.