Nosso incrível exército de Brancaleoni (com ‘i’ mesmo)

Bastou caminhar um dia na Itália, de Aosta a Châtillon, para aprendermos que fazer trekking é entrar para o exército. Servimos na via Francígena precisamente de 22 de junho a 19 de julho de 2017,  onde aprendemos a ter coragem diante dos coelhinhos brancos, disciplina para lavar diariamente as roupas sujas, tenacidade para comprar comida no supermercado, estratégia para programar o dia seguinte e resiliência para madrugar.

A rotina espartana era cumprida sob o comando de uma provável descendente do líder do Incrível Exército de Brancaleone (já disse que o sobrenome da Renata é Brancaleoni?). Passados quase 20 dias de quando pusemos nossos pés na Itália, cruzamos o trecho de Costamezzana a Fornovo. Já estávamos bastante acostumadas umas às outras, noves fora as brigas.

Nossa Brancaleoni – com i – não era trapalhona como o famoso personagem do cinema, nem seu batalhão era  maltrapilho como foi o exército das telonas. Tínhamos tudo de boas marcas, mas ainda assim não passávamos de mulheres sem glamour e grana, sem sapatinhos de princesas e muitas vezes com uma fome incontornável.

Vocês terão fortes emoções se refizerem conosco o caminho por onde marchamos com bravura quase dez dias antes do fim de nossa missão na Itália.

Estamos a caminho de Fornovo, conhece? Foi a cidade onde a Força Expedicionária Brasileira rendeu a Divisão Alemã e a Resistência Fascista na 2ª Guerra Mundial. Brevemente pisaremos o chão onde os pracinhas brasileiros foram heróis e provavelmente seremos carregadas no colo ao chegar, dada a glória da histórica batalha vencida por eles! Nossa expectativa é grande: como seremos recebidas lá tantos anos depois do memorável confronto, nós, as brasileiras do incrível exército de Brancaleoni?

Família da Stefania, que recebeu tão bem essas estranhas peregrinas

Alguns quilômetros antes de chegarmos à cidade, tivemos uma clara demonstração do que nos aguardava. Ao nos identificarmos a uma família local, fomos convidadas a descansar em um haras. A Stefania cercou-nos de cuidados e serviu-nos o verdadeiro parmesão de Parma, água com gás, café, pães caseiros e uns frios bem finos, além de chocolates. Saímos de lá para nossa marcha mandando beijinhos e abraços para nossos anfitriões. Pura fama, como não convém a graves soldadas.

Seguindo nosso caminho, ladeamos por um bom tempo um rio poluído e seco e passamos por uma grande cervejaria desativada, até que um espinho furou o pé de uma de nós.

Como o espinho conseguiu atravessar o forte solado da bota? Suspeitamos, refletimos com nossos altos QI e entendemos que aquele caminho ainda estava cheio de truques e perigos desde a 2ª Guerra! Macacos nos mordam! Por sermos o máximo, provavelmente desviamos instintivamente das armadilhas e bombas armadas naquele bosque para nos capturar, restando só o ataque do espinho.

Não desanime com isso porque nós, destemidas, bravas, brasileiras, misses daquelas estradas de terra, vencemos tudo, tiramos o espinho do pé, seguimos em frente, tomamos suco e agora estamos nos aproximamos de Fornovo! Cruzamos a bela ponte sob um enorme rio seco e adentramos na praça de Fornovo como se fossemos heroínas. Mas…

Cadê as trombetas?

Os habitantes não deram as caras. “Uai”, diriam os mineiros.

Obviamente estavam entrincheirados em suas próprias casas e comércios fechados, espionando e temendo a corajosa divisão feminina brasileira do incrível e famigerado exército de Brancaleoni! Era dia 8 de julho de 2017 e o termômetro marcava 42ºC, com sensação térmica de 50ºC.

Não nos intimidamos pela cidade fantasma e atravessamos com vigor sentido Respicio, especificamente onde décadas antes ficava a divisão alemã.

Castigadas pela sede, sob um sol que não remete em nada ao frio congelante sofrido pelos pracinhas, fomos arrastando nossas mochilas com frutas compradas na promoção. Seguimos pela estrada deixando para trás e para nunca mais a cidade de Fornovo, a única do trajeto que não conhecemos por dentro.

Muitos, muitos passinhos sob o sol

O asfalto mole grudava nas nossas solas e soltava grandes ondas de calor. Do acostamento víamos os motoristas de carros que passavam em alta velocidade, com cara de quem se pergunta onde guardávamos nossos canhões… Na mochila, claro, onde mais?

A paisagem já se convertia na da Toscana, mas a beleza não estava amenizando a fome, a sede, o cansaço e a moleza do calor desértico. O caminho não tinha sombra e não dava trégua. A água do reservatório estava entrando em ebulição. Comandante, o que fazer?

“Vamos parar todas, tirar nossas meias e pôr nossos pés para cima”, disse a certeira Renata… e obedecemos.

É isso que se faz na guerra: põe-se os pés para cima, não sabem?

Achávamos que o alvo Respicio era mais perto… ou será que nossos mapas estavam errados? Se fosse isso, não chegaríamos nunca! Que roubada, o que fazer? Pensamos um pouquinho com nossos miolos moles e, de tão sensacionais que somos, logo montamos a estratégia de deixar Respicio de lado e seguir direto para o alojamento de dois andares reservado pelo Booking, que tinha sinalização na estrada. Vamos deixar essa história de guerra pra lá.

Resolvido!

No entanto, o cansaço permanecia, por isso, de novo consultamos nossa suprema capitã Brancaleoni sobre o que fazer. Solene, de blusa justinha amarelo Brasil, ela virou-se para a cabo Adriana com aquele charme das protagonistas:

“O que você decidiria, cabo Adriana, se estivesse liderando esse exército?”

“Pararia a tropa na gelateria, senhora”.

Só inteligência pura para ter tamanha sacada naquele momento. Obedecemos, mas, se por um lado lá tinha gelato, banheiro e água fresca, por outro tivemos de falar grosso e mostrar nossa excelência moral, estratégica, física e espiritual para aquele soldado raso que nos atendia fazendo cara feia.

O haras

Vencida mais essa batalha, passamos nossos protetores solares, gloss – não sem antes tirarmos uma selfie – e marchamos para a pousada… ops… acampamento.

Quando já tínhamos espertamente tomado nossos banhos, atualizado o Facebook, lavado nossos uniformes na máquina e contado carneirinhos, fomos servidas de um jantar regado a vinho vinagrado, torta com pimentas fortes e inteiras, salada mal temperada e um macarrão “vá lá”. Após a sobremesa frugal, bradamos de mãos dadas nosso grito de guerra (Por hoje chega!!!) e caímos nas camas fofas.

“Amanhã vai ser outro dia. Essa batalha foi vencida!”, decretou a cabo Adriana.

Pensando no risco que corremos de termos sido envenenadas no jantar, uma de nós trocou mensagens com o primo Douglas, confessando em tempo real as agruras da guerra e sobre estarmos coogitando desistir de tudo, pois para o dia seguinte estava prevista a perigosíssima subida dos Apeninos. Ele não se conformou e decretou:

“Prima, diga a todas que subam os Apeninos. Vocês são integrantes do incrível exército de Brancaleoni e não desistem nunca. O Brasil torce por vocês.”

Dá arrepios só de lembrar. Com essa injeção de ânimo, na madrugada seguinte lá estávamos nós na estrada de novo, gatas de botas, subindo a ladeira.

A coisa mais linda de se ver!

 

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

 

Este delírio é a primeira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Costamezzana-Fornovo, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora

5 comentários

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    • Roseli em 9 de junho de 2018 às 20:20

    Que legal, Marcia! Genial! Adorei!!!

    • Ana Cláudia Intrabartollo Segatto em 9 de junho de 2018 às 14:47

    Marcinha, estou adorando conhecer a história de um exército corajoso, destemido e brasileiro, enfrentando desafios em terras italianas! Confesso que me sairia muito bem na fria missão “Gelato”!
    O que acontecerá no próximo capítulo?
    Beijos…

    • Kele Morais em 7 de junho de 2018 às 06:56

    Fazer parte desse exército não é brincadeira, não! Eu revivo e me encontro transformada nessa história, não só pelas encantadas palavras da minha amiga peregrina, mas também pela transformadora experiência da aventura vivida. Obrigada pelo delicioso texto!!!!!

  1. Pronto!
    Entrei para a história das Peregrinas!!!
    Como primo da Marcia conectado ao desafio dos Apeninos 🙂
    História empolgante.
    Abraços a todas.
    Parabéns pela conquista e pelo hasteamento da bandeira Brasileira.

    1. Entrou mesmo, e de verdade!

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