Dizem os franceses que é preciso exagerar para ser compreendido. Eu gosto de exagerar e de ser prolixa. Sempre acreditei que essa é uma estratégia poderosa para entreter e despertar o interesse das pessoas à sua volta, emprestando mais cor e sabor aos detalhes quando você precisa comunicar com precisão emoções extremas, boas ou más.
Se você descreve um assalto sofrido com palavras neutras e num tom de voz monocórdio, ninguém chegará nem perto de compreender os momentos de pavor que você enfrentou nem sua persistente sensação de desamparo. Se, da mesma forma, você relata um encontro inesperado com um antigo ‘crush’ que resultou em uma tórrida noite de amor, sem se dar ao luxo de fazer pausas dramáticas para incrementar o suspense, intercalar suspiros e abusar de expressões onomatopaicas, seus amigos acharão que você sofre de anorgasmia.
Por isso, para falar do verão 2021, quero me derramar sem censura no relato da minha absoluta incompatibilidade com o clima tropical em geral e do meu profundo desconforto com as temperaturas abrasadoras típicas do verão brasileiro, qualquer que seja a região do país em que você more.
Sei que praticamente todo mundo aguarda com ansiedade o período que vai de dezembro a março. É como se disparasse um alarme em todas as consciências de que é chegada a hora de sair de casa e demonstrar alegria – falsa ou verdadeira. Praia, boteco, roda de samba, parques lotados de gente se exercitando e confraternizando sob o sol. Tem início também a temporada de campanhas publicitárias que exploram ad nauseam imagens de jovens festejando a vida ao ar livre e se encharcando de cerveja, refrigerante, água de coco e sorvete. Inútil perguntar para onde vão nessa época os padres e freiras tradicionalistas, além dos velhinhos, principalmente os asmáticos e os cardíacos: provavelmente estarão fazendo uma excursão para regiões de mata fria ou encarando um retiro espiritual dos brabos.
A mim, mais do que convite para a auto exposição, essas associações só trazem desejo de distanciamento e reclusão. Não quero me misturar com nada nem ninguém, por mais arrogante que isso possa parecer. Sinto minha pele arrepiar só de pensar na sensação angustiante de estar sentada em uma praia, com o corpo todo lambuzado de filtro solar, misturado com sal, suor e areia – sabe aquela terrível impressão de estar sendo empanada viva para ser inapelavelmente morta esturricada logo depois?
Na cidade, não é diferente, ao contrário. À testa porejando sem parar, gotas de suor escorrendo para dentro dos olhos, ao excesso de luminosidade que obriga a franzir a testa e enrugar os olhos, à necessidade de enxugar constantemente as laterais do nariz e da boca e à transpiração empapando suas roupas formais de trabalho vem somar-se o vapor que vai subindo do asfalto e deixa um cheiro de borracha queimada no ar, o barulho enlouquecedor do trânsito, o ar poluído que não circula em função dos prédios altos.
No verão brasileiro você entende visualmente a crueldade da desigualdade social, sem precisar recorrer à leitura das teses mais densas de algum sociólogo ou filósofo político. Por mais que esteja envolto em trajes etéreos e confortáveis da linha Dolce & Gabbana, se você está caminhando há algum tempo pelas ruas em meio ao calor escaldante, inevitavelmente vai parecer pobre, desalinhado, vulgar, uma pessoa fora de forma e de maneiras rudes. Nada pode distingui-lo nessa situação: sua maquiagem caríssima vai derreter do mesmo jeito e sua gravata vai parecer aquilo que é de fato, uma forca. Só quando você está a bordo de seu carro importado blindado com as janelas escurecidas fechadas, helicóptero, avião, lancha ou iate particular ou ainda dentro de um hotel cinco estrelas, contando com o auxílio de um potente aparelho de ar-condicionado ligado na intensidade máxima, tendo à mão uma taça de champanhe Veuve Clicquot gelada, pode sonhar em recuperar seu status e seu ar de distinção.
Não há civilização possível no calor tropical, amazônico. Daí você compreende também a pecha de preguiçoso aplicada a todo nordestino ou nortista. Não há determinação, força de vontade ou empenho consciente que se sustente quando seu corpo se exaure com o menor dos gestos. Basta levantar um braço para que uma nova onda de suor inunde seu corpo e entorpeça sua mente. Não há concentração disponível para a realização de um trabalho intelectual, para a leitura ou para uma reflexão filosófica a respeito da dimensão trágica da existência. Você está preso à materialidade, às sensações corporais, ao momento presente.
Não dá para esquecer ainda do caudal de desgraças de que o verão se faz habitualmente acompanhar. Chuvas torrenciais, alagamentos, deslizamentos de terra, soterramentos, queda de árvores, raios e falta de energia elétrica, represas secando e racionamento de água, irritação permanente, cansaço incapacitante, inflamação dos espíritos e consequente aumento da violência.
Se esse mal-estar todo acontece em anos normais, sem a interferência de fenômenos climáticos como El Niño e La Niña, imagine então o que representa para uma pessoa avessa ao calor como eu estar confinada em casa, sem muito o que fazer para me distrair, e sendo forçada a usar uma focinheira como máscara até mesmo se eu estiver abrindo a porta apenas para jogar o lixo fora.
Graças a Deus, este ano não haverá Carnaval, a perfeita visão do inferno para mim. Ninguém merece ficar horas sentado diante da televisão assistindo às já desgastadas imagens de corpos nus ou fantasiados de baiana, índio – ou pior ainda, de figuras dos tempos do império com roupas de veludo e arminho em volta do pescoço.
Mas, devo admitir, nenhum mal se compara aos terríveis transtornos físicos e psicológicos causados pelo calor do verão brasileiro, pelo desemprego, pela fome, pela violência e pelo coronavírus somados: é somente quando sua atenção é desviada para o festival tupiniquim de obscurantismo, negacionismo científico, conservadorismo nos costumes, fundamentalismo religioso, inação governamental e nauseantes negociatas políticas a céu aberto que você sente que lhe falta ar por outras razões mais insondáveis e sub-reptícias do que a mera ausência de vento. No outono ou na primavera, no inverno ou no verão, você habita uma surreal Pasárgada, onde não é amigo do rei e não lhe é dado o direito a escolher nem a mulher nem a cama onde vai se deitar.
Bem-vindo à desesperança do verão do não consigo respirar.