por Márcia Intrabartollo.
Para onde as mulheres que sofrem violência doméstica podem fugir?
Para onde as mulheres que sofrem violência doméstica podem fugir levando pelas mãos seus filhos e sem formação que lhes permita ganhar o sustento?
Quando me imagino no lugar de uma delas, me vejo sonhando com um condomínio de casas em que as mulheres pudessem viver por um tempo e que fossem recebidas por assistentes sociais, advogadas e psicólogas capazes de lhes orientar sobre os aspectos legais de uma separação, lhes dessem cursos de capacitação profissional, intermediassem empregos. Para ficar tudo ótimo, o condomínio teria uma estrutura de creche junto. Ah, e tinha que ter interfone com porteiro para evitar que os maridos as tirassem da paz. Já inventaram isso?
Quando eu era criança, fui vizinha de uma família por muito tempo. Pai, mãe e três filhas. O marido sofria de alcoolismo e era o provedor da casa. Ele era ótimo em matemática, apesar de ter frequentado pouco a escola. A mulher era doce e sensível, ótima mãe, católica e cuidava da casa e das crianças com os parcos recursos que ele lhe dava, apesar de ter os bolsos cheios de notas.
Morávamos em um loteamento, desses em que cada um constrói sua própria casa. A deles era um primor de bom gosto e capricho e tinha uma especificidade: de lá saiam sons o tempo todo. Saíam berros, xingamentos, barulhos de coisas se quebrando. Saíam “Ais”, saiam “Para”! Eu sentia a vibração daquela vida opressiva chegando até meu quarto. Tínhamos que aumentar o volume da televisão para não ouvir as brigas diárias.
Eu vi o dia em que a polícia chegou depois da mulher ter usado o telefone da minha casa para chamá-la. O marido tinha batido nela e dado uma surra na menina maior. Ela até suportaria se fosse só com ela, mas com a menina ele não podia ter mexido. Vi os policiais perguntarem o que ela tinha feito para que ele perdesse o controle daquele jeito e fiquei intrigada com esse outro jeito de ver quem era culpado.
Só muito mais tarde eu entendi que ela suportava todo aquele sofrimento porque não tinha para onde correr. Mesmo achando que era pecado, ela se separaria dele se tivesse para onde ir. Mas nenhum dos seus muitos irmãos e irmãs achavam que em briga de marido e mulher se deve meter a colher. Os irmãos dele achavam que estava tudo certo. E nós e os outros vizinhos percebíamos como tínhamos uma vida harmoniosa em comparação com a vida dos outros.
“Só muito mais tarde eu entendi que ela suportava todo
aquele sofrimento porque não tinha para onde correr”
Teria sido tão fácil se a família tivesse se unido para alugar uma casa para elas (ou acolhê-las) e por uns meses tivessem passado um aperto a mais para lhes dar comida – só até que ela engrenasse como costureira, crocheteira, passadeira, já que era boa de trabalho…
Teria sido tão fácil se algum advogado vizinho tivesse se disposto a orientá-la sobre o processo de separação, que lhe renderia pensão alimentícia…
Mas ninguém se envolveu. Nem mesmo nas duas vezes em que elas fugiram para a casa dos parentes e depois de uns dias foram mandadas embora porque eles não tinham como sustentar quatro bocas. Ninguém, tampouco, se interessou por ele.
Estou falando de um caso fácil: família de classe média, em um bairro de classe média, com marido que tinha como dar pensão, crianças saudáveis e educadas, mulher com condição de trabalhar. Um caso fácil em que nem assim houve solidariedade. Bastaria apoio. Uma mão forte para amparar aquela fragilizada mãe, que achava que sem o marido não conseguiria alimentar as crianças.
Dirão alguns que ela podia ter se separado assim mesmo. Falar com base em sua própria formação, personalidade e condição é fácil! O fato é que o medo e a opressão paralisam, e o fato maior é que ninguém é solidário a ponto de se envolver realmente, de cuidar da vítima.
Ela só conseguiu se separar do marido quando as filhas começaram a ganhar uns troquinhos como vendedoras.
Por que não vejo casas de apoio para receber mães acuadas, aquelas do meu sonho? Por que não vejo mulheres de sucesso e muita grana capitanear um projeto que propicie esse apoio, assim como jogadores de futebol apoiam escolinhas de jogadores, assim como os cantores sertanejos apoiam o Hospital do Câncer?
Eu, você, os parentes, os vizinhos, iniciativas privadas, o poder público… por que ninguém dá a essas mulheres a condição de fuga?
5 comentários
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Porque antes de ajudar, a gente julga e procura culpados. Poucos se permitem ajudar cegamente e sem julgamentos.
Parabéns pelo texto!
Excelente, Marcinha! Lembro dessa família e da agonia que tínhamos, mesmo sendo crianças, em resolver o problema dos nossos vizinhos. Hoje, lendo essa crônica, me questionei sobre o quão presente isso é na vida de muitas mulheres que, sem amparo, seguem sofrendo sozinhas…
Autor
Certamente isso acontece muito, e ainda bem pior em muitos casos. E todo mundo assiste.
“Quando você era criança” era assim e, suponho, faz muito tempo isso, não? E o panorama ainda é o mesmo. Mulheres sofrem e a sociedade ainda faz vistas grossas. A violência contra a mulher ocorre no mundo todo, em maior ou menor grau, mas ocorre. A única luz que consigo ver é aquela que se forma a partir da união de mulheres em defesa de sua humanidade, de seus direitos, de sua liberdade de ser.
Autor
O melhor dos mundos é se homens de bem e mulheres se unirem, mas no mínimo as mulheres.