Passarinha, suricata ou um ventilador

Acordei de madrugada e me dei conta de que aquela era a 28ª cama diferente em que dormia nos últimos 28 dias, e a última. Não havia mais o que andar. Na manhã seguinte pegaríamos o caminho de volta ao Brasil.

Depois de ter passado por beliches, camas de campanha e de solteiro, a 28ª era de casal, como a primeira, e de certa forma essa situação fechava o ciclo. A mesma colega do primeiro dia dormia comigo, mas diferente da noite em Aosta em que tremi de medo, agora eu pensava na guinada que minha vida dera: estava “grávida”.

As estrelas me viam como um pontinho na cama de um B&B em Siena, na Itália, em um dos cinco continentes, na Terra, que pouco representa no Universo. Eu era nada mais do que um pó perdido de felicidade porque estava em uma cidade medieval incrível e tudo tinha dado certo. Não havia conseguido vencer o medo, mas o domara; não havia conseguido ser engraçada, mas estava mais leve; minha rigidez se movera só alguns milímetros, mas foi a brecha para uma expansão. E tinha pego barriga, estava prenhe daquela outra “eu”.

Fechei os olhos e me lembrei de dois dias antes, quando deixamos San Gimignano para trás. Andávamos de madrugada por uma cidade que se conservava igual há séculos, e eu pensava se outros peregrinos que pisaram aquele chão de 63 anos antes de Cristo tinham se metamorfoseado.

Agora também é muito cedo e desperto do primeiro sono de volta ao Brasil. Meu marido dorme. Fecho os olhos e San Gimignano volta: lá o céu enluarado estaria mudando de cor, passando de carbono a um azul Bic, com nuances cor-de-rosa. Uma ou outra padaria já começaria a abrir, enquanto grandes arbustos verdes já estariam se revelando nas muralhas.

É bonito ver a mudança de geografia, o sol nascer, o dia se pôr. A gente passa, o dia passa, o tempo passa, tudo vai mudando e a gente pensa que está igual. Daqui para frente, serão só lembranças e os cuidados com essa bebê que fica sendo constantemente gerada e parida. Chegará o dia em que só haverá sombra da Márcia anterior.

Para mim, a peregrinação pela Francígena foi um ritual de passagem. Eu andava frustrada com a comodidade que tinha dado para minha vida. Mantinha presa em uma torre a passarinha que eu sonhara ser. Naquele março de 2017, abri a porta da gaiola, pus uma mochila nas costinhas dela e mandei-a passear.  Foi para a Itália disposta a renascer.

Quando já tinha se passado um ano, meu sobrinho disse que pareço uma suricata. Uma semana depois, minha enteada afirmou que eu lembro um ventilador de piso. Dá na mesma… passarinha, suricato ou ventilador, um ou outro fica retinho e girando a cabeça de lá para cá, tentando dar conta de tudo.

Fiquei orgulhosa de passar essa imagem pois parece que estou conseguindo “ter o pasmo essencial que tem a criança, se ao nascer, percebesse que nascera deveras”. O Fernando Pessoa fala bem lindamente dessas coisas, mas, Lucas e Nágila, vocês foram tão certeiros e modernos que vou preferir as definições de vocês. Ganharam o dia, agora me aguentem…

Sigo em frente, e é para valer.


Queridos leitores que acompanharam carinhosamente a série Pé Dá Letra,

amigas peregrinas Adriana, Kele, Regiane, Renata, Sheila e Vera,

Silvia Pereira, que me abriu este valioso espaço no Palavreira,

minha mãe e meu amor:

agradeço a todos pelo apoio na minha jornada de autora!

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a última crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Eu Vi Gigantes, clique aqui.

 

11 comentários

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    • Monica, a Fófi em 16 de agosto de 2018 às 09:27

    Que pena que acabou!!
    Me levou as lagrimas, literalmente e me enchi de orgulho de vc. Parabéns pela coragem e que a sua transformação, o seu crescimento e o conhecimento de se mesma continuem e te inspirem cada vez mais. Beijo no coração.

    • Andréa Leão em 9 de agosto de 2018 às 19:34

    Parabéns, Marcinha! Me encanto com suas palavras! Que dom maravilhoso! E essa vou levar para a vida: “Não havia conseguido vencer o medo, mas o domara; não havia conseguido ser engraçada, mas estava mais leve..!!!!

    • Miriam em 9 de agosto de 2018 às 17:59

    Lindas palavras de palavras . Quero mais …

    • katia em 9 de agosto de 2018 às 15:26

    Que lindo, Márcia. Parabéns! Mais uma vez vc me emociona! Escritora de primeira!! Dá uma vontade danada de voar também. Já era sua fã, agora sou mais. Volta logo, estou na expectativa de outras histórias. Bj!! Sucesso!!

    • Francis em 9 de agosto de 2018 às 00:05

    Querida Intrabartolo, vc é uma criança maravilhosa , distante e mais feliz que a mulher que eu conheço há 28 anos.
    A escritora já existia dentro da mulher, mas, aflorou-se na criança de agora!!
    Felicidades !!
    Meus parabéns sempre !!

    • Kele em 8 de agosto de 2018 às 20:48

    Foi uma grande oportunidade voar ao seu lado. Suas palavras encantam essa importante aventura de transformação e dão poesia para essa metamorfose. Estarei torcendo para novos capítulos, novos caminhos, novas camas, novas oportunidades. Sou sua fã!!!!!

    • Nivaldo em 8 de agosto de 2018 às 18:51

    Vou emprestar de Comenius, do livro O Único Necessário um comentário para ficar à altura dessa grande menina.

    “A causa de todas as confusões do mundo é apenas uma: que os homens, não distinguindo entre o necessário e o não necessário, deixam de lado o necessário e, em troca, se ocupam, se complicam e se enredam sem fim com o não necessário.”

    • Ana Cláudia Intrabartollo Segatto em 8 de agosto de 2018 às 12:58

    Parabéns, “Passarinha”!
    Para mim, a série “Pé Dá Letra” sintetiza a importância de termos a oportunidade de convivermos um pouco com nós mesmos… Longe da vida automática que levamos. Com o tempo, a gente esquece quem éramos na infância e adolescência, porém, orgulhosamente, tive a oportunidade de conviver com você nas duas fases. Naquela época você já era uma bela passarinha, cheia de ideias, escrevendo lindas redações e andando tão depressa, com seus cabelos longos, que eu dizia que você voava quando íamos juntas para a escola. Então, a passarinha voltou!

  1. Que pena !!! Quero mais histórias contadas por você Marcinha que foi uma companhia maravilhosa , obrigada pelos momentos passados juntas e que venham mais.

    • Jesualda em 8 de agosto de 2018 às 11:33

    Vida que segue! Todos os dias um renascer é algo para morrer logo mais. No meio, vida! Reflexão sublime, chamo-a de beija-flor… ou como me chamava um padre amigo, “libélula ” . Natureza inquieta!
    Parabéns pela série! Comece logo outra para nosso deleite! Bjs

    • sheila em 8 de agosto de 2018 às 09:46

    Marçoca, linda despedida. Vamos sentir falta dessa delicadeza.
    E aguardar para ler os muitos livros que surgirão dessa mente imaginativa e graciosa.

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