Capsulite. Tendinite. Bursite. Dois mil e vintite. Parece que é tudo isso junto que tem me causado dores no ombro e braço direitos. Dores que me fizeram escrever, semana passada, “não consigo escrever o texto dessa semana.” Ler a frase que eu tinha acabado de digitar me doeu mais. Porque eu escrevo desde que fui alfabetizada. Antes de ser alfabetizada eu já escrevia na minha cabeça, o que fiz depois foi só começar a colocar no papel. Meus diários reais e fictícios e diários de personagens que eu criava. Tenho um diário até hoje guardado, que escrevi quando tinha uns oito ou nove anos, anotando detalhes de uma viagem que fiz (na minha cabeça enquanto folheava um Atlas – ai, meu ombro – do meu pai) para a Europa. O avião pousou em Madri, em um dia cinza e chuvoso, foi difícil conseguir entrar no ônibus que nos levaria para o hotel, a cidade estava um caos por causa da chuva.
Quase quarenta anos depois, quando fui para a Espanha também com o corpo, me despedi de Barcelona em um dia cinza e chuvoso, em que não conseguia achar um táxi para me levar até o aeroporto. Tive que me enfiar no metrô mesmo, às seis da tarde, carregando as malas, encharcada, e só cheguei a tempo porque um funcionário espanhol se compadeceu de mim e foi na minha frente feito Moisés. Quando me sentei no café do aeroporto, com tudo resolvido, para só esperar o voo, me lembrei da minha viagem ficcional. Não consegui não sorrir, pensando no vaticínio da menina para quem era tão fundamental escrever, fosse o que fosse, fosse como fosse. Essa menina que sou hoje. Se digito e a dor vai do ombro direito para o ombro esquerdo e se alastra até o dedo médio da mão direita e até a orelha direita, digitar “não consigo escrever” doeu mais. E agora, nesse exato momento enquanto digito, lembro da minha mãe me dizendo que eu parecia catar milho na primeira máquina de escrever que meu pai me deu. Uma maquininha infantil em vários tons de azul, trazida de uma viagem que ele fez a trabalho para os Estados Unidos. Ele me explicou que a máquina não tinha os acentos porque em inglês eles não existiam. Eu digitava e colocava os acentos depois, com a caneta. E pensava nessa língua que não tinha acentos. O que mais existia sem eu ter a mais remota ideia? E lá ia eu para o Atlas, para a Barsa, para a Mirador, para a biblioteca da escola. E lá ia eu experimentar a vida pela leitura e pela escrita. Como nunca deixei de fazer. A angústia e a delícia de tanto querer conhecer.
Nesse ano cheio de dores como meu corpo agora, conhecer o mundo e as pessoas por meio de tantas páginas já escritas ainda é o melhor remédio que encontrei, com um ganho: a existência dos clubes de leitura, os quais conheci só na vida adulta. Se ler sozinha já melhora as dores, compartilhar a leitura com tantas pessoas incríveis que habitam o mundo (sim, há muitas, há tantas) faz a dor quase sumir. Pelo menos por algumas horas. O que já é muito.