Fui uma criança muito tímida. Sofria para dizer “presente” durante a chamada. Mas havia algo maior que me impelia a ultrapassar a timidez. O mesmo acontece, penso agora, com o medo. Sempre senti muito medo: e se der errado? E se ninguém gostar? E se eu virar motivo de piada? E se eu der vexame? E se eu for mal? E se chover?|E se alguém morrer? E se alguém ficar doente? E se o carrinho da montanha-russa despencar?
Mas tem essa mão invisível nas minhas costas que me empurra. Foi essa mão que senti, por exemplo, quando era uma criança com menos de 8 anos (sei por causa da professora) e ouvi minha mãe cantar para mim “criança feliz, feliz a cantar, alegra a embalar teu sonho infantil…” Achei tão bonita a música, a imagem de Jesus dizendo “vinde a mim as criancinhas”, que pensei: “vou cantar para a classe amanhã”. No dia seguinte, assim que vi a professora, perguntei se eu podia ir para a frente da classe cantar uma música para meus amigos e ela me disse que sim. Quando, já na classe, todo mundo sentado, ela me chamou, eu corei e pensei: “por que eu fiz isso?”.
Levantei e, enquanto caminhava até a lousa (por causa da minha altura sempre sentei na penúltima ou última fileira), puxei uma amiga que se sentava nas fileiras mais ao meio. Agarrei o braço da menina, ela perguntou o que era para fazer e eu disse “nada, só fica aqui comigo”. A fofa ficou (obrigada, Bianca), firme ao meu lado, enquanto eu, que canto feito uma taquara rachada, cantei a música inteira. A professora puxou os aplausos e eu voltei para a minha carteira, deixando a Bianca sentadinha na dela. Até hoje me pergunto o que passou pela minha cabeça. E agora, pensando enquanto escrevo, acho que foi isso: vontade de compartilhar com a classe algo que achei bonito. Não é o que faço, pensando melhor ainda, nos clubes de leitura? Não é o que faço com o perfil que montei no Instagram (@leituraslucianagerbovic, olha o jabá aí), só para compartilhar com as pessoas os livros que leio? Aquilo de que a gente gosta tanto não merece chegar a mais pessoas?
Pode parecer estranho ser tímida e ir para a frente da classe cantar. Ser tímida e ser a primeira a levantar a mão para falar ou fazer alguma exposição ou se voluntariar para uma atividade. Talvez seja a forma que encontrei de enfrentar algo terrível (a exposição para quem é tímido) para depois sentir o alívio de que, afinal, não foi tão ruim assim. E ganhar mais casinhas contra a timidez ou contra o medo ou contra seja lá o que for que pode nos paralisar. Participei das peças de teatro, das danças, dos desfiles, dos campeonatos. Ser tímida e ter frequentado tantas casas de amigas e amigos. Na infância cheguei a ter tantas escovas de dente espalhadas pelas casas onde dormia que perdi a conta. Tinha as amigas com quem trocava confidências. As amigas com quem brincava de bonecas e casinha. As amigas com quem jogava baralho. As amigas com quem cantava e dançava. As amigas com quem viajava. As amigas com quem fazia tudo isso. E os amigos. Era tímida e perguntei a um deles se podia me ensinar a beijar. Aprendi (acho).
Ser leitora e escritora e gostar tanto de ficar sozinha. Observar. Ouvir. Pensar. Refletir. Lembrar. Sem nenhuma interrupção. As férias anuais que aprendi a me dar, viajar sozinha para que ninguém interrompa meus pensamentos, que a pandemia me (nos) tirou. Ser leitora e escritora e gostar tanto de ficar sozinha e gostar de estar tanto com gente. Nas salas de aula, nas rodas de leitura, nos cafés, nas livrarias, nas mesas de bares, nos restaurantes, na beira do mar ou da piscina. Que falta as pessoas estão me fazendo! Pensar em uma mesa de bar cheia de amigos e amigas e copos vazios de cerveja e caipirinha e caju amigo chega a provocar uma dor física.
Ser tímida e gostar de ficar sozinha e gostar tanto de ler e gostar tanto de uma festa. De dançar descalça e ficar tão suada a ponto de alguém perguntar se você caiu na piscina. Dançar funk ao fim da aula com os alunos e alunas e ouvir as risadas por causa da minha falta de rebolado. Foi como participar de um clube de leitura em espanhol essa semana e falar um portunhol precário, mas e daí? Porque no fundo, no fundo mesmo, sinto é medo de deixar de fazer alguma coisa por causa da vergonha ou do próprio medo. Rir, rir de mim mesma, rir daquilo que pode parecer um paradoxo e não é, porque somos tantas coisas e aí é que está a beleza, ainda é meu maior aliado para encarar essa vida que, como escreveu Guimarães, quer da gente é coragem.
E que coragem ela nos pede agora. Sinto tanta falta das gentes, Guima!