Assim que o mais recente livro da italiana Elena Ferrante entrou em pré-venda pedi o meu pelo Kindle. No dia 1° de setembro ele será baixado automaticamente, foi mais ou menos esse o teor da mensagem que recebi. E pouco demais da meia-noite lá estava ele, “A vida mentirosa dos adultos”, disponível no aparelhinho sem cheiro. Com meu pai no hospital em um entra-e-sai de cirurgias e exames, sem dormir há tantas noites, comecei a ler naquela madrugada mesmo. Não, ainda não terminei. Sim, já fui fisgada mais rapidamente por outros livros da italiana, mas continuo com ele, ainda pelas madrugadas insones e solitárias, entrando nessa vida mentirosa dos adultos que já conheço tão de perto.
Ontem saí do isolamento para ir ao enterro de uma pessoa muito querida, enquanto recebia a notícia de que meu pai ia sair da UTI. Fazia calor e o sol estava bem brilhante no meio da tarde, as gotas de suor que caíam das nossas testas se misturavam com as lágrimas debaixo das máscaras, o que fazia com que nos afastássemos um pouco do grupo de pessoas já distanciadas para enxugar esse líquido do rosto sem a máscara. Tira máscara, tira óculos, passei batom só para melar mais a máscara?, limpa o rosto com as mãos, põe máscara de novo, mais suor, mais lágrimas, alguns, como eu, de olhos fechados para escutar melhor o rabino que falou, atrás da máscara grossa, que o melhor que podemos fazer para honrar nossos mortos é continuar vivendo intensamente, de preferência colocando em prática os bons exemplos que nos deixaram, sugestionando também que seria bom praticarmos a justiça social. Achei simples e bonito, me afastei um pouco mais para enxugar mais uma vez o rosto.
Só se abraçaram aqueles que já estavam isolados juntos. Ou pelo menos a maioria fez assim, enquanto um vento soprava e levantava umas folhas do gramado agora aberto em um retângulo onde o caixão foi colocado. Peguei três punhados de terra para jogar sobre ele, fiquei com as mãos vermelhas e grossas, um pouco de vida na pele há tantos meses asséptica. Recusei o álcool gel que me ofereceram em seguida, uma das folhas ainda rolava sobre o gramado, alçando pequeninos voos. Ouvi um amém em uníssono. Dava para ouvir passarinhos e a sombra dos carros na estrada logo ali.
Terminada a cerimônia, fui apresentada a algumas pessoas, de longe, que por trás dos olhos inchados e das máscaras me diziam “prazer, tudo bem?”, e eu sorria, inclinava a cabeça para o lado e levantava os ombros. De onde vem essa nossa mania de perguntar “tudo bem?” em vez de perguntar “como você está?”, por exemplo? Em meio a essa pandemia, a cada “tudo bem?” que é dito já vem uma explicação: quer dizer, tudo bem não, né?, mas você entendeu? E precisamos de pandemia para repensar essa forma de perguntar? Quando é que, na vida adulta, está “tudo bem”? Essa pergunta, com a resposta “tudo bem”, é também parte da vida mentirosa dos adultos? Das mentiras que contamos não só para os outros, mas para nós mesmos? Sim, eu estou bem, eu estou aguentando, eu estou me fortalecendo, eu não estou desistindo, mas não está tudo bem. Tudo está bem longe de estar bem.