Meu primeiro filho tinha seis meses quando meu marido achou que devíamos viajar, só eu e ele. Eu estava tomada por aquele menino, tão desejado, que tinha saído das minhas entranhas. Estava tão tomada que me sentia uma nova pessoa, a quem eu precisava ser apresentada novamente, apesar dos meus mais de 30 anos de convivência comigo. Se pensar em ficar longe daquele bebê me dava algum pânico, pensar em ficar um pouco longe dele, só comigo, me dava também algum alívio. E o convite era para passarmos 15 dias em Paris, o que facilitou muito a decisão. E lá fomos nós, no dia 25 de dezembro, eu com a dor de ficar longe do meu bebê na primeira virada de ano dele, a qual ele passaria dormindo sem saber ainda que os anos viram. A questão, eu sabia, era minha. Sempre foi só minha.
Nos 15 dias que ficamos em Paris recebi vídeos dos meus pais, que ficaram com meu filho, mostrando a primeira engatinhada dele. Teve vídeo também de um novo dente. E a cada vídeo eu era atravessada pela pergunta “o que estou fazendo aqui?”, ao que eu prontamente respondia: “estou exercendo a minha individualidade”. Por mais que me doesse a distância, saber que eu lutava por me manter um indivíduo me fazia um bem danado. E chegamos ao último dia de viagem, meu coração apertado com a certeza de que o avião cairia e eu nunca mais veria meu filho tão desejado e amado. Porque mães não exercem a individualidade impunemente, assim decretou o patriarcado.
O avião não caiu e ver meu filho de novo, feliz cuidado pelos avós, teve um gosto diferente. Não era só ele que eu abraçava nessa volta. Aquele abraço era também para mim. Eu tinha conseguido.
Quando ele tinha um ano e pouquinho, eu já grávida do segundo, uma barriga do tamanho de quinze meses de gestação, me separei de novo do meu filho mais velho, por uns dez dias. De novo, no último dia de viagem, tive a certeza de que o avião cairia. E de novo quando viajei com minha família de origem, pai, mãe, irmão e irmã, deixando meus dois filhos com o pai. E a cada volta, a cada abraço, eu me abraçava de novo.
Eu sou mãe, sim. Eu amo essas criaturas mais do que qualquer outra criatura que exista, tenha existido ou vá existir sobre a Terra, mas eu sou também um ser, uma mulher. E também me amo muito. E ficar longe deles, de vez em quando, quando posso, é oferecer a eles uma mãe melhor, mais satisfeita.
Já com eles maiorzinhos cheguei em casa um dia, depois de um café com uma amiga que mora na Espanha e estava passando uns dias no Brasil, e avisei: “vou para Madri”. E lá fui eu, um mês depois, ficar fora por uma semana. Lá, na Espanha, a pergunta que mais ouvi das pessoas, ao descobrirem que eu era casada e mãe, foi: “mas seu marido deixa você viajar sozinha?” E todas as vezes expliquei que o verbo “deixar” não se aplicava à relação que tenho com meu marido. Eu não tenho que “deixar” nada. Ele também não. Isso desde o namoro, que durou nove anos. Aliás, nunca tive namorados que me “deixaram” fazer ou não fazer alguma coisa. E acho que a recíproca sempre foi verdadeira. A segunda pergunta que mais ouvi foi: “mas você não sente falta dos seus filhos?” Claro! É claro que sinto, mas eu volto melhor para eles, ainda que eu sempre ache que o avião vai cair e nunca mais verei meus filhos.
No ano seguinte, a viagem aumentou de uma semana para três. Como andei mais, sozinha, respondi às perguntas ainda mais vezes. Liguei todos os dias para casa. Acordaram? Dormiram bem? Tomaram café? Almoçaram? Foram bem na escola? Jantaram? Já vão dormir? E tudo de novo todos os dias. Até para amar é preciso alguma distância.
E no ano seguinte eu ia repetir a viagem de três semanas, pensando já mesmo em um mês, quando veio a pandemia. E aqui estou, há um ano e três semanas, convivendo com meus filhos to-dos-os-di-as. To-das-as-ho-ras. Que bom que é assim. Que posso estar com eles. Mas eles mesmos já notaram: “iihhh, no começo da noite é melhor não falar muito com a mamãe”. Porque estou mais cansada, porque já foi um dia todo em videochamada e telefone e mensagens de texto e de áudio e planilhas e apresentações e páginas em branco e aplicativo do banco e de comida e de farmácia e de supermercado e pedidos de ajuda e notícias de mais gente doente e internada e eu rodando em casa, procurando aqueles cinco minutos de silêncio, sem ouvir “mãe, mãe, mãe… cadê o link?, não acho a lição, o vídeo não entra, o computador travou, minha professora não me escuta, preciso de uma vassoura, onde está meu caderno?, tem folha sulfite?, você comprou o livro de inglês?, e o livro que ensina a fazer pão?” E eu só penso no jumento dos Saltimbancos. Foi me dando uma vontade retada de chorar… e chorar… e chorar… e me tranco no banheiro para dar aquela choradinha, mas batem na porta porque o link não entra e “como faz raiz quadrada? Qual o maior osso do corpo humano?” E eu querendo deitar no chão gelado e me abraçar e gritar que não sei, não sei, não sei…
E como estão as outras mulheres? As que estão com alguém que “deixa” e principalmente “não deixa”? As que estão sem trabalho e cuidando de uma casa e dos filhos sozinhas? As que não conseguem ficar em casa porque precisam fazer o trabalho fora e deixam os filhos sozinhos? E essas mulheres todas me povoam e não deito no chão do banheiro para chorar porque quando uma se levanta, levanta todas as outras, isso eu aprendi.
Em vez disso, saio sorrateira, pego o livro da vez e continuo trancada no banheiro. Quando batem de novo, digo que estou com dor de barriga. E avanço mais um capítulo. Pelo menos algumas boas páginas, ali, sentada no chão gelado. Ganho meus minutos de silêncio, afinal, uma pessoa com dor de barriga deve ser deixada em paz. E saio renovada, pronta para as próximas rodadas. Pronta para esticar as duas mãos a quem me pede. E pronta para pedir a quem tanto me oferece as suas.