Eu tinha quatorze anos quando consegui meu primeiro trabalho, de professora de inglês para crianças ainda não alfabetizadas. Logo depois ganhei uma turma de crianças maiores. E depois outra. Lembro de corrigir as lições dos meus alunos durante as aulas de inglês que tinha na escola. Enquanto ficávamos no “I am You are He She It is”, a professora me dava uma piscadela e eu seguia fazendo as correções. No fim da semana eu estava bem cansada, ao que meu pai me dizia: você não tem ideia do que é o cansaço.
Dei aula de inglês até deixar a cidade em que cresci para voltar para a cidade onde nasci (São Paulo que nunca saiu do meu coração) para fazer faculdade. Logo consegui um estágio perfeito para quem estudava de manhã. O estágio na emissora de tevê começava só após o almoço e seguia madrugada adentro, fosse nas gravações de shows e eventos fosse nas geladas ilhas de edição, para onde eu levava muito café e chocolate. E tinha as gravações nos sábados, domingos e feriados. Lembro de chegar em casa após a primeira semana com aulas na faculdade, produção, captação e edição de shows e me deitar no chão da sala mesmo, braços e pernas espalhadas e olhos fechados, achando que dali nunca mais sairia. Já não morava mais com meu pai, mas me fiz a pergunta: será que agora sei o que é o cansaço? Ah, os nossos limites que sempre se alargam.
Terminei a faculdade, continuei trabalhando nessa emissora, depois mudei, era produção de tarde e de noite, edição na madrugada, um pouco de sono pela manhã, programas ao vivo nos finais de semana, fui assaltada em São Paulo, comecei a ganhar uma síndrome de pânico, resolvi estudar Direito e voltar para o interior, dei mais aulas de inglês, logo já veio o estágio na advocacia, depois a chance de estagiar em escritórios maiores na capital, não quis mudar de escola, estrada todo dia, estágio de manhã e à tarde, faculdade à noite, poucas horas de sono, achava que já sabia o que era cansaço, mas não, meu pai tinha razão, eu não tinha nem trinta anos, dava até tempo de fazer ioga, me formei, continuei no escritório da capital, casei e voltei para São Paulo de vez, onde nasceram meus filhos.
Meu riso agora (que você não está vendo, mas que está aqui no meu rosto) é de nervoso. O que eu achava que eram poucas horas de sono até então era, na verdade, um banquete. Eu ouvia as amigas falarem que com um bebê em casa a gente mal conseguia tomar banho e não conseguia imaginar como isso era possível. Afinal, o que tanto faz um bebê para impedir a mãe de um banho? (Meu riso agora cresce e sinto até palpitação). Lembro da primeira vez em que consegui lavar e secar o cabelo, meu filho com uns três meses, e da sensação de que, talvez, talvez um dia, mesmo que longe, eu teria minha vida autônoma de volta.
Meu filho mais velho não tinha nem um ano e meio quando nasceu o segundo, o bebê que chorava de três em três horas para comer, feito um relógio suíço programado por um alemão. Lembro de me deitar às vezes na cama, olhar para o marido e dizer: não é possível que esse cansaço que estou sentindo exista. Mas era, e eu o sentia. E isso que eu tinha marido, ajudante em casa, mãe, irmã, cunhada e sogra a postos, amigas, dinheiro para pagar a maioria das contas, a dos médicos incluída. Eu chorava no banho para dar um alívio ao cansaço e pensava nas tantas mulheres e mães como eu, só que sem a minha sorte e os meus privilégios. Passei a entender tantos comportamentos, mas tantos…
Sim, o cansaço foi se transformando em pânico que se transformou em depressão, que fica para outro dia, outra história, tantas outras histórias, mas meu pai me olhava e já não me falava que eu ainda não sabia o que era cansaço. Até porque sabia o que podia vir se falasse. Já enfrentou uma mãe exausta? Então.
Assim como não me falou dias atrás, quando cheguei para passar uns dias com ele e minha mãe, carregando filhos, sacolas, livros, apostilas, malas, mochilas de escola com as lições vencidas e vincendas, computador para as aulas, cronograma de cada um, mais o meu, revezamento de computador e celular para todo mundo poder fazer o que tem que fazer pela tela, agora você tem aula, depois é a minha reunião, mil e quinhentas mensagens no Whatsapp a cada duas horas, agora quem tem aula é você, depois eu dou aula, enquanto eu dou aula ninguém me chama peloamordasdeusas, e depois das aulas saiam da tela, nosso cérebros vão derreter e nossos olhos ficarão quadrados, não é possível que isso vá acabar bem, mas, mãe, a gente sai da tela e vai pra onde agora? Nós também estamos cansados, mãe.
Não. Não digo para eles que ainda não sabem o que é o cansaço. Dou um abraço, me permito chorar um pouco. Estamos todos muito cansados, eu digo, vamos fazer o possível, fazer o que dá para fazer agora, pegar um livro cada um, por exemplo, deitar juntos na cama, cada um com seu livrinho, uma viagem individual que pode ser compartilhada, leio um pouco e te conto um pouco, você lê e me conta, e a ficção vai entrando e conversando com a realidade, o que é uma e o que é outra, e o corpo vai esquecendo do cansaço, a cabeça vai para longe e volta, vai e volta, e tem risada e tem mais choro e estamos juntos – estamos juntos.
O que acham dessa ideia, hein?