Quando o amor desbota

* RAUL OTUZI

Somados aos treze copos americanos de pilsen
vertidos com ânsia e sede,
os duzentos e doze mililitros de cerveja estilo american IPA
(fabricada artesanalmente por um colega de trabalho)
foram suficientes para deflagrarem uma súbita coragem
que estava recôndita nele desde os tempos
em que acertara um pontapé em Miltinho,
o centroavante dos campinhos de futebol
em que jogava quando era criança.

Então primeiro a esmo, do nada
e depois com a metralhadora bem empunhada,
ele mirou caprichosamente para onde ela estava
e disparou palavrões que desconhecia que sabia.

Ficou sem fôlego,
mas esforçou-se para terminar com um raivoso,
“você não presta, entendeu?, some da minha vida, puta”.

Era mais de uma e meia da madrugada
e ela estava dormindo de bruços.
Ele ficou ainda mais ensandecido por não ter percebido
e pela infertilidade de tantos impropérios dirigidos.

No dia seguinte, acordou cedo e foi trabalhar.
Antes, porém deu um beijinho na testa dela,
que continuava sonhando,
talvez com um mundo onde não houvesse rompimentos
e tensões etílicas gratuitas.

Porra! Que preguiçosa ruminante; pensou,
com irrefreável ironia, mas suave ternura,
quase arrependido.

Quando ele voltou para a casa,
pós expediente, exausto pelos sapos engolidos
e vislumbrando álcool e sexo reconciliatório,
encontrou somente um bilhete escrito
com letras miúdas e extremamente pontiagudas:
“sim, meu sono é pesado,
mas minha vida, agora sem você,
nunca foi tão leve”.

 

(*) Raul Otuzi é  professor, publicitário e palavreiro ousado


 

 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!’

 

 

1 comentário

    • Evandro da Costa Favacho em 6 de dezembro de 2017 às 11:29

    Texto enxuto como requer o Facebook. Final surpreendente.

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