Filmes baseados em fatos reais costumam despertar questionamentos sobre quanto de verdade foi preservada na criação de seus roteiros e quanto de ficção foi usada para tornar suas narrativas mais palatáveis ao espectador. No caso de “Dois Papas”, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”), essas questões certamente surgirão, mas meu conselho é que você as esqueça completamente para se concentrar no melhor motivo para saborear este belíssimo libelo sobre diálogo, redenção e fé.
Até porque fica muito clara a intenção de Meirelles com esta adaptação cinematográfica para o livro de Anthony McCarten – que também assina o roteiro: mostrar, nestes tempos de intolerância e radicalismos políticos, como o diálogo entre correntes de pensamento opostas é possível quando conduzido com respeito, empatia e, principalmente, disposição para ouvir. O registro biográfico fica em segundo plano.
No caso de “Dois Papas” temos, de um lado, o religioso alemão Joseph Ratzigner, cujo pontificado como Bento XVI foi marcado por uma defesa ferrenha dos dogmas seculares da Igreja Católica (proclamações solenes que devem ser consideradas definitivas, infalíveis, imutáveis e inquestionáveis pelos fiéis). De outro, está o então cardeal argentino Jorge Bergoglio – que viria a se tornar o papa Francisco -, de formação jesuíta (ordem conhecida pelo trabalho missionário e educacional, que presta voto de pobreza) e com ideias próprias e pouco ortodoxas sobre tais dogmas.
Os protagonistas são interpretados, respectivamente, pelo veteranos Anthony Hopkins e Jonathan Price, atores ingleses que nos premiam com atuações “exatas” e irretocáveis. Cabe a eles – principalmente ao carismático Price – parte do mérito pelo filme não ter resultado massante, mesmo sendo quase todo alicerçado em diálogos e limitado a poucos cenários. Mas a maior parte cabe mesmo a Meirelles, que demonstra, mais uma vez, sua maestria na direção de atores e muita sensibilidade na orquestração das cenas. A montagem também é muitíssimo bem amarrada.
Esgrima dialética
A química entre os protagonistas começa quando Bergoglio é convocado a Roma por Bento XVI, em um dia qualquer de 2012. O argentino vai encontrá-lo em Castel Gandolfo – residência de verão do papa – com a intenção de pedir a assinatura dele em seu pedido de aposentadoria. Entre negativas veladas de um e divertidas investidas do outro, o que se segue, ao longo de três encontros, são diálogos que tecem uma espécie de esgrima dialética entre os padres. Começa com discordâncias sobre temas comezinhos do sacerdócio, como o celibato dos padres, homossexualidade e a consagração da comunhão a divorciados. Evolui para discussões filosóficas, como a natureza (i)mutável de Deus, que seguem temperadas por sutis pitadas de humor. O que é melhor: sem nenhum hermetismo. A linguagem é simples, mas nem por isso raso o conteúdo.
Não por acaso, o roteiro faz ao menos três menções a “muros” e “pontes” como metáforas das defesas que a Igreja sempre ergueu em torno de si para proteger-se de mudanças (os muros), em oposição aos caminhos abertos para o diálogo (as pontes) que Bergoglio propõe para reconectá-la a seus fiéis. “Construímos muros ao nosso redor o tempo todo enquanto o real perigo estava dentro, conosco”, dispara o argentino, antes de introduzir uma crítica clara à postura da Igreja ante as denúncias de abusos de crianças por padres.
Mas é quando a conversa deságua em confissões pessoais que a narrativa realmente atinge seu clímax! Numa Capela Sistina deserta, ambos os sacerdotes se despem de seus papeis para apresentarem-se um ao outro como humanos falíveis, tão pecadores quanto quaisquer outros. É tocante a forma como os até então antagonistas acabam se acolhendo, se amparando e lembrando um ao outro o mecanismo do perdão.
É como atravessam, juntos e finalmente irmanados, a ponte que construíram ao longo de 2 horas (tudo somado) de diálogo honesto e respeitoso. Um exemplo que, certamente, todos nós poderíamos aproveitar muito bem.
3 comentários
Uma delícia o filme! A leitura da crítica reforçou a mensagem deixada e aumentou a reflexão da importância do diálogo e o respeito no mundo antagônico em que vivemos.
Parabéns Palavreira!
Silvia, brilhante texto.
Adorável!
Bela análise de um dos filmes mais esperados neste ano estranho. Além de concordar com as questões técnicas muito bem colocadas em seu texto sempre tão bem construído, quero registrar o quanto o filme me emocionou. Sim, chorei em vários momentos. Algo que eu não imaginava.