Estava acostumada a nunca chamar a atenção. Aliás, rezava por isso.
Na escola nova, para a qual transferiu-se logo após a família refugiar-se em um apartamento de Cohab, fugindo das enchentes anuais da casa antiga, à beira de um rio, descobriu uma forma genial de passar despercebida.
Em vez de esconder-se no fundão, como sempre, escolheu sentar-se na primeira carteira da primeira fileira em frente à porta. De costas para todos, podia esquecer-se dos olhares dos outros alunos, que sempre a encabulavam tanto. Ainda fugia às expansões da turma mais descolada, que sempre ficava no fundão e de quem costumava ser alvo fácil de piadas.
Além disso, aprendeu que sentar-se nas últimas carteiras implicava atravessar a sala inteira sob os olhares da turma até chegar ao seu lugar, aumentando as chances de ter que falar “oi” ao chegar ou “tchau” ao sair – interações que sempre demandavam uma troca de olhares, uma certa empostação de voz e uma naturalidade que nunca conseguia fingir direito.
Abandonar a invisibilidade era tão sacrificante!
Costumava rezar, antes de entrar em qualquer novo ambiente, para que estivesse totalmente vazio ou suficientemente cheio para que não dessem conta de sua chegada.
Chegou a dar meia-volta na porta de um consultório médico no qual já aguardavam três pessoas, para que não passasse pela tormenta de sentir-se notada. Sentir os olhares de avaliação de sua altura desmedida para a idade, a magreza exagerada, os dentes grandes encavalados uns sobre os outros por falta de espaço na arcada infantil – o que lhe valeu um apelido inesquecível na antiga escola – despertavam-lhe taquicardias, suores, vergonha extrema!
Na primeira carteira essas ocorrências caíram a quase zero!
Além do mais, podia prestar mais atenção na aula, sua única diversão no dia.
Aprender algo novo costumava irrigar seu cérebro de uma sensação de bem-estar semelhante à que sentiu quando descobriu que conseguia ler as palavras de um livro de histórias infantis pela primeira vez.
“Aprender algo novo costumava irrigar seu cérebro
de uma sensação de bem-estar semelhante à que
sentiu quando descobriu que conseguia ler”
Mundos novos se abriam para sua imaginação, onde se refugiava a maior parte do dia, quando em casa.
Ter nascido a temporã de quatro irmãos a relegou a um isolamento não planejado, que ela aprendeu a preencher com histórias que criava em sua imaginação – quase sempre continuações para os filmes que assistia na Sessão da Tarde.
Aprender lhe municiava com ferramentas para enriquecer ainda mais essas narrativas.
Por isso nunca estudava para provas. Não precisava. O que sorvia na primeira aula sobre qualquer assunto, nunca mais esquecia. Tirava notas máximas em tudo sem esforçar-se.
Seu caderno, sempre em dia com as tarefas que fazia prazerosamente na mesa da cozinha, logo que chegava da escola, era disputado todo dia seguinte, por alunos apressados em copiar os exercícios que a professora passara como dever de casa.
Não se importava, desde que a deixassem em paz pelo restante da jornada!
Logo descobriu na escola nova uma biblioteca, onde podia pegar livros emprestados gratuitamente, a hora que quisesse. Costumava ouvir perguntas incrédulas de outros alunos ante as pilhas que costumava levar para casa: “Você vai ler tudo isso?”.
E lia.
E sentia tanto prazer, que aos poucos começou a querer escrever histórias também, para remendar aquelas cujos finais não a tivessem agradado. E criar histórias passou a ser um passatempo prazeroso, que não a deixava perceber o quanto era solitária.
Em sua cabeça, não o era.
Chegaria o tempo em que sentiria necessidade de interagir fora de sua imaginação e essa transição não seria fácil nem indolor.
Mas esta é uma outra crônica.