Depois de quarenta e oito dias dentro de um apartamento, no centro de São Paulo, com duas crianças transbordando energia represada, conseguimos colocar internet no sítio da família, onde cresci e de onde meus pais se mudaram há anos, o que nos permitiu mudar de paisagem. Assim que minha irmã me avisou, pelo Whatsapp que ora agradeço e ora amaldiçoo, “temos internet”, arrumei minha mala com um notebook, pouca roupa e muitos livros, mais as malas e o material escolar das crianças e fomos. Está certo que uma não colocou o material no carro, mas isso fica para outro dia para eu não me estressar (mais) de novo.
Há pelos menos dez anos eu não dormia no sítio, desde que meus pais se mudaram às pressas em razão de um assalto traumático. Mas o importante era sair do apartamento. O importante era o verde que não vemos em São Paulo. Como disse meu filho, assim que chegamos: “ver árvore dá uma esperança, né?”.
Com o sol já posto, a segunda pergunta do mesmo filho: “mãe, será que vou conseguir dormir aqui? É silêncio demais”, ele explicou. Eu, na cozinha, preparando um lanche, respondi: “não para mim”.
De fato, longe da zona urbana o silêncio pode ser ouvido, assim como a escuridão vista, mas a casa onde passei a infância e a adolescência fala. Na cozinha, onde agora eu preparava o misto quente, a voz de minha mãe nos chamando para comer. Os barulhos das panelas. Os latidos dos cachorros do lado de fora, com quem minha mãe conversava. Tinha um cachorro que chorava enquanto comíamos, contei para o meu filho, e sempre o colocávamos na conversa, para que não se sentisse deslocado. “Ele era fofinho?”, meu caçula pergunta. E contei a história da chegada do Tobias à nossa família, de laço e tudo, um presente para minha irmã.
Na sala a voz de meu pai, reclamando das novelas. “Vocês ficam vendo essa dramaturgia barata, com gente boa ou gente má, precisam ver arte de qualidade, o ser humano não é binário”. Não ligávamos para o que ele dizia, nem sabíamos o que era binário, e meu pai não deixava de nos alertar. Nunca deixou. Os passos apressados, meus e dos meus irmãos, no corredor dos quartos, o medo de andarmos no escuro de uma casa grande no meio do mato, como meus filhos agora. O vento que uiva e entra pelas janelas. Sempre foi assim, contei para meus meninos de olhos arregalados. Quando éramos crianças, minha mãe mandou cortar umas espumas para colocar no vão das janelas. Na falta dessas espumas, preencho os vãos com a própria cortina.
E tem os beijos que eu trocava com os namorados, no lado de fora da casa, na hora de me despedir. O sítio que era tão afastado da cidade, que me fazia pensar que nunca arrumaria um namorado com amor suficiente para ir até lá me ver. Mas fui muito querida, eles vieram. Conto sobre eles para meus filhos, que defendem o pai. O pai que é mais bonito. O pai que é mais legal. Assim como eu defendia meu pai quando, no quarto onde agora estou dormindo, minha mãe abria uma caixa de madeira onde guardava as cartas de um ex-namorado. “Que ridículo esse Toninho”, eu dizia para minha mãe, sem saber então que todas as cartas de amor são ridículas. E não entendia a bronca que tomava do meu pai: “não fale assim, sua mãe gostou dele e você tem que respeitar”. Frase que meu marido repete para os meus filhos.
Nas paredes da sala, os quadros que meu pai pintou e não levou quando se mudou. Tantas perguntas sem respostas em todos os cantos da casa. Em cada canto, uma madeleine*. Escolho mergulhá-las ou não no chá de hortelã, que recolho do que sobrou da horta.
Não consigo escrever como Proust*², mas tenho aqui umas páginas em branco e uma pilha de livros, além daqueles que encontrei guardados, cobertos de poeira. Se o trabalho doméstico e o remunerado, mais as aulas das crianças permitirem, poderei fazer, ainda que doída, uma bela viagem.
4 comentários
Pular para o formulário de comentário
Lindo, Lu!
Lindo texto! Você levou os gatos?
Gostei muito desse post… deu até pra ouvir a natureza e sentir o cheiro de grama molhada do sítio 🥰🥰
Autor
🥰