Olha, eu já vinha mais ou menos conformada em ignorar a intransigência e agressividade dos haters e a acolher com bom humor a inconsistência dos terraplanistas, mas não estava preparada para me confrontar com o mesmo modus operandi deles na negação da ameaça mundial representada pela pandemia de coronavírus.
Foram dois episódios na mesma quarta-feira: o primeiro na casa de meus pais, para quem estou servindo de leva-e-traz de farmácia-mercado-e-afins para mantê-los abastecidos sem que precisem deixar o confinamento doméstico. Minha tia chega da rua para visitar e vai direto dar um beijo no rosto de minha mãe, sem que eu tivesse tempo de impedir.
“Que é isso, tia? Não sabe que tem que cumprimentar de longe agora?” – questiono.
Ela dá de ombros: “bobagem, filha. Se tiver que pegar a doença, pega, e se tiver que morrer, morre. Deus é quem decide”.
Respeito minha tia e sua religiosidade. Sei que duvida mais por ingenuidade do que por arrogância, influenciada por outros, por isso não me alonguei muito na ladainha ensaiada. Mas recusei seu beijo e, quando estava sozinha com meus pais, decretei: “Se a tia aparecer de novo, vocês recusem beijo e abraço, hein!?”.
E fui para a Farmácia Especializada do Hospital das Clínicas, onde me aguardava uma longa fila na calçada só para pegar a senha de outra fila: a de retirada de medicamentos – no caso, para tratamento de um câncer em meu pai. Eu já padecia de desconforto sob um sol de 38 graus há uns 15 minutos quando ouvi esta pérola do homem atrás de mim:
“Uma bobagem esse pânico todo disseminado pela imprensa por causa do coronavírus. Aonde já se viu fechar tudo, mandar as pessoas pararem de fazer suas coisas? Querem ferrar com a economia de vez? Eu não paro mesmo. Se pegar, peguei. E aí? É uma gripe, gente!”.
Não me contive.
“Desculpe, meu senhor, mas não é só uma gripe, e esta doença pode matar a parcela mais frágil da população…” – ele nem me deixou continuar.
“Mata nada! Quem morreu até agora já estava doente, podia ter morrido de dengue ou qualquer outra coisa”, retrucou, já elevando o tom de voz e dando-se ares arrogantes.
“Não é possível. O senhor não lê jornais? Não assiste TV? Não deve ter pais idosos…”
“Assisto sim, mas acho tudo uma mentirada, um exagero dessa imprensa vendida. E meus pais vão muito bem, obrigada” – respondeu, me interrompendo de novo.
“E qual é a fonte de informações do senhor? Porque eu sou jornalista e posso garantir que não tem como a imprensa mentir nesta escala…”.
A esta altura ele já está falando sem parar, por cima da minha fala, para não me deixar ser ouvida: “Não preciso de fonte pra saber que isso tudo é uma palhaçada…”.
“E que interesse qualquer um teria em mentir sobre isso? Não faz sentido…” – eu já falo alto também.
“É tudo uma palhaçada! Quero que me mostrem o obituário do coronavírus…” – e eleva o dedo no ar, aponta pra minha cara… o que me enfurece!
“Então o senhor está me dizendo que, irresponsavelmente, não está se prevenindo e pode estar, neste momento, me contaminando e a todos à sua volta? – eu também já não controlava o volume da minha voz e da minha indignação.
“Ah, estou infectando você sim, tô infectando todo mundo aqui” – continuou, rindo em tom de chacota, como se a palhaça fosse eu.
“O senhor é um irresponsável!”.
Ele fica vermelho, faz cara de ódio, chama o segurança:
“Esta mulher está me incomodando!” – grita para o pobre, que olha para um, olha para outro, e pede calma baixinho, como se tivesse medo de apanhar.
“Irresponsável! Chama a polícia. Vamos ver pra quem eles vão dar razão.” – desafio.
E, inexplicavelmente (ou não), ele fica quieto.
Olho em torno para me desculpar e recebo olhares de sobrancelhas levantadas em rostos mascarados e sorrisinhos cúmplices de outros rostos sem máscara. Todos parecem dizer: “fazer o quê, minha filha?”
É… fazer o quê com pessoas que escolhem desacreditar informações de procedência comprovada e se baseiam em “absolutamente nada” para criar e disseminar teorias da conspiração que servem a seus próprios propósitos? E eu pensando que eleger um presidente ruim e defender que a terra é plana era o que de pior esse tipo de gente podia fazer! Mas, como diz uma grande amiga, “pra pior não tem limite”, e o pior da vez é ignorar, por pura opinião (!), a prevenção contra um vírus que pode matar a parcela mais indefesa da população.
Esses “sabe-tudo” ainda vão colocar o mundo todo a perder.