A memória de velhas crianças

GUILHERME NALI *

A vida do ser humano, se colocada em um plano cartesiano, seria assim: a linha sairia lá de baixo e iria aumentando até chegar ao ponto máximo. Depois entraria em decadência pura. Biologicamente é o ciclo natural da vida. A gente nasce, cresce, se reproduz e morre. Inevitável. Mas existe uma única coisa no mundo capaz de quebrar esse determinismo. A memória.

Há alguns anos tenho pesquisado muito sobre a memória coletiva ao redor de um acontecimento do passado. Um dos temas foi a Revolução de 1932, em Cássia dos Coqueiros – MG. Para entender o que esse evento histórico significou para aquela população fui atrás das testemunhas oculares da época. Descobri um universo de poucos senhores e senhoras de idade avançada, que eram crianças quando as tropas chegaram à pacata cidade.

Eu sabia exatamente o que perguntar a eles, para levantar meus dados. Mas uma dúvida parecia não ter resposta certa: Como eles se lembrariam de algo que aconteceu há mais de 80 anos? O resultado foi surpreendente.

Por se tratar de um acontecimento traumático para a cidade e principalmente para as crianças, que mal entendiam o que estava acontecendo – muitas famílias fugiram de suas casas com medo de tiroteio no meio da noite -, muitas imagens ficaram gravadas na memória. Mas carregadas de sentimentos do universo infantil.

“Eu passava a noite embaixo da cama. A gente ouvia o zunido das balas lá fora assim: zum, zum, zum”, declarou um dos meus entrevistados. Essa fala, cheia de onomatopeias, é característica das crianças, mas está na boca de um senhor de 90 anos. O passar dos anos, claro, trouxe o sentido que eles não entendiam sobre a revolução, mas a memória permaneceu como foi percebida na época.

Por serem os únicos a ter “legitimidade” de contar a história, todos trazem consigo um sentimento de orgulho.


“Por serem os únicos a ter ‘legitimidade’ de contar a história,
todos trazem consigo um sentimento de orgulho”


Principalmente por terem participado, de certa maneira, de um evento importante do país, do Estado – mesmo que SP tenha perdido a guerra.

A memória, carregada de sentimentos, mesmo que a escala da vida do sujeito já esteja em queda, sempre nos remete ao ponto máximo da nossa história. Assim nos tornamos importantes, imprescindíveis, eternos.

Esse é o sentimento que vou levar dos meus velhinhos, quando eles se forem. Meu avô já não pode andar mais, mas mantém a lucidez e a ternura de sempre. Minhas avós também têm lá suas limitações de saúde. Mas são puro amor, quando estão com os filhos e os netos.

Sempre que posso, peço que eles me contem uma história do passado, de quando estavam fortes, saudáveis, produtivos. E instantaneamente, pelo menos por alguns segundos, todas as dores da vida passam e são substituídas por um sentimento de glória.

Quanto mais histórias de vida nós pudermos contar e ouvir, mais chances temos de admirar o ser humano, principalmente os idosos, tão importantes na nossa vida. Essa é minha maneira de manter nossas velhas crianças vivas pra sempre.

 

* Guilherme Nali
Jornalista, editor e apresentador do
Bom Dia Cidade e Jornal da EPTV


 

 

 

 

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3 comentários

    • Sueli Severiano maia em 1 de setembro de 2021 às 00:13

    Parabéns Guilherme !!! amei o testo e sempre um prazer conversar com os idosos ,eles tem sempre algo a nos passar sobre suas experiências na vida, e conselhos sábios também . É um presente poder sentar e ter aquela conversa boa ,e sentir que eles amam relembrar o passado e as experiências que tiveram no longo dos anos. Até mais.

    • Karine em 16 de agosto de 2017 às 19:04

    Eu vivi a minha infância ao lado dessas velhas crianças. Saí da maternidade pra casa dos meus avós paternos. Delícia de infância. Naquela época se ouvia o que eles diziam. E era gostoso ouvir. Nossa casa estava sempre alegre na presença das minhas tias avós. Uma delas em especial, a tia Marita, protagonizou boas risadas minhas com as implicâncias do meu avô, que vivia a dizer: -Marita, não encha a cabeça da menina com as suas lorotas! Kkkkkkk Ah, Guilherme, parabéns pelo texto, e obrigada por ter me feito recordar dias belos!

    • Francisleine Galesco em 16 de agosto de 2017 às 17:27

    Parabéns, Guilherme!
    Linda história!!!
    Os idosos se renovam a cada “história” contada, e nós nos renovamos também, porque eles sempre têm o que nos ensinar.
    Abraço

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