por Thiago Roque
O ano era 1966, a temperatura nos Estados Unidos subia com a luta pelos Direitos Humanos por parte da população negra. As HQs, que retratavam como ninguém as mudanças da época, saíam na frente de novo e trouxeram pela primeira vez Pantera Negra, um herói negro, em suas páginas.
Lá se vão 50 anos até o mesmo Pantera Negra integrar, após aparição em “Capitão América – Guerra Civil” os 10 anos do Universo Cinematográfico Marvel com filme próprio. E, mais uma vez, para fazer história – apesar de “Blade” ainda levar o crédito de primeira obra cinematográfica com protagonista negro.
Mas faz história porque “Pantera Negra” não é apenas mais um filme de herói do estúdio preferido da moçada. É, também e principalmente, um necessário manifesto sobre a diversidade.
Tão necessário que a Academia não conseguiu ignorá-lo. Assim, pela primeira vez em 91 anos, um filme de herói rompe a barreira das indicações técnicas – “Pantera Negra” foi indicado ao Oscar de Melhor Filme, além de Melhor Figurino, Melhor Mixagem e Edição de Som, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Direção de Arte e Melhor Canção Original.
“a Academia não conseguiu ignorá-lo. Assim, pela primeira vez em 91 anos, um filme de herói rompe a barreira das indicações técnicas”
O retorno de T’Challa (Chadwick Boseman) a Wakanda para ser coroado rei dá início a uma jornada por um universo sem igual nos filmes da Marvel. O diretor Ryan Coogler nos apresenta uma nação que se equilibra entre o futurismo e o orgulho de suas tradições, que fala a língua da ciência moderna e os inúmeros dialetos dos ancestrais. Cores, figurinos, olhares, sonoridades, tudo é meticulosamente pensado e detalhado para apresentar ao espectador o que ele deve ter ignorado (propositadamente ou mesmo sem querer) por anos e anos: a cultura negra – e de uma forma tão provocativa que, daqui pra frente, você deve sentir falta de uma estampa geométrica colorida ou mesmo de um batuque em outros filmes…
“Pantera Negra” também nos presenteia com um dos melhores vilões da saga Marvel até aqui: Killmonger (ponto para Michael B. Jordan) vem carregado de idealismo e de sede por justiça – não se assuste se, em determinado momento, você até torcer um pouquinho por ele. O personagem carrega as frustrações de um povo excluído, sofrido, maltratado – e faz de tudo isso combustível para seus atos. É dele a melhor frase do filme: “Jogue-me no oceano com meus antepassados, que pularam dos navios porque sabiam que a morte era melhor do que a escravidão”.
“às mulheres foram reservados relevância, bons diálogos e incríveis takes de ação”
Mas se engana você se acha que apenas os homens brilham neste filme: às mulheres foram reservados relevância, bons diálogos e incríveis takes de ação (as cenas na Coreia do Sul, meus amigos!), seja com Okoye (Danai Gurira), general do exército das Dora Milaje, seja com a espiã Nakia (a sempre competente Lupita Nyong’o), seja com Shuri (Letitia Wright), uma cientista brilhante, jovem e descolada – ah, ela também é irmã do rei T’Challa, quase esqueci.
Além do protagonismo feminino, vale destacar também a convivência entre a antiga e a nova geração de atores negros – se Michael B. Jordan e Letitia Wright brilham pelo time dos jovens, Forest Whitaker (Zuri) e Angela Bassett (a rainha-mãe Ramonda) fazem a trama toda passar por seus diálogos para ganhar história, equilíbrio e uma dose de drama. E, claro, não decepcionam.
Como também não decepciona a trilha sonora que corre durante todo o filme – que tem consultoria de Kendrick Lamar. Vale dar o play depois.
Se os filmes de heróis surgem para inspirar o melhor nas pessoas, “Pantera Negra” surge não só para corrigir uma falha histórica com a população negra, mas também para mostrar que o mundo perde demais quando comete o erro de negar sua tão rica pluralidade.
O Pantera Negra sabia disso lá em 1966. Mas ó: ao menos, essa (injusta) espera de 50 anos valeu a pena.
Thiago Roque é jornalista, cinéfilo e descalvadense orgulhoso.