Segundo a pedagoga brasileira Nilma Lino Gomes, os penteados trançados nasceram como indicativos de status nas sociedades africanas. Primeira mulher negra a comandar uma universidade pública federal brasileira (foi eleita reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira em 2013), Nilma lembrou, em artigo seu de 2003, que “no início do século 15, o cabelo funcionava como um condutor de mensagens na maioria das sociedades africanas ocidentais”, sendo “parte integrante de um complexo sistema de linguagem”. O estilo do penteado podia indicar, por exemplo, o estado civil, a origem, a idade, a religião, a etnia, a riqueza e até a posição social da pessoa. “O significado social do cabelo era uma riqueza para o africano”, escreveu a pedagoga, cujas pesquisas apontaram que, entre alguns povos, uma mulher deixar o cabelo despenteado sinalizava que alguma coisa estava errada, que ela estava de luto ou deprimida, por exemplo.
Considerado este contexto histórico, poderíamos atribuir apenas a desinformação o fato de, recentemente, uma clínica médica na Grande Belo Horizonte ter demitido uma recepcionista que se recusou a desfazer as tranças afro de seu cabelo. Só que não! Acionada na Justiça, a empregadora disse, no processo, que “o penteado não se enquadrava no padrão estético que a boa imagem institucional exigia”. Acabou condenada, em primeira instância, a indenizar a ex-funcionária em R$ 30 mil por danos morais.
Justiça feita, já que, quando você diz que um penteado afro está em desacordo com a “boa” imagem que quer passar, está afirmando, nas entrelinhas, que a cultura negra (da qual este penteado é uma expressão) passa uma imagem ruim. E quando você diz que a cultura ou a raça à qual uma pessoa pertence é menor, você está dizendo que esta pessoa é menor. Isso provoca o que, em Direito, configura dano moral (abalo psíquico, intelectual ou moral sofrido em decorrência de um ataque à imagem, honra, etc).
Esse tipo de comportamento – que seus praticantes nem percebem que é preconceituoso porque não se dão ao trabalho de refletir sobre – é considerado “racismo estrutural”. É chamado assim porque está amalgamado na estrutura social de tal forma que, de tanto ser praticado sem reflexão, as pessoas consideram “normal”, inofensivo, até certo. Mas pra quem o sofre não é!
Reflita: o que leva alguém a considerar a cultura afro ruim? Quem se der ao trabalho de responder a esta pergunta pra si mesmo, com sinceridade, correrá o risco de descobrir que também é racista.
Vejamos:
Se para respondê-la você lembrou que a população preta é maioria nos bolsões de pobreza e presídios brasileiros (o que é verdade) está sendo preconceituoso, porque nem todo negro é pobre ou criminoso. Pensar nisso ao visualizar um penteado afro denuncia, nas palavras do dicionário Oxford, uma “generalização apressada”, ou seja, que você está julgando toda uma população pelos erros de uma parcela dela.
Além de preconceituoso, está sendo injusto (por admitir a possibilidade de negros serem mais propensos ao crime) e, na melhor das hipóteses, mal informado, por ignorar as razões históricas dessa estatística.
Vamos a elas: quando foi abolida a escravidão no Brasil, os ex-escravos foram abandonados à própria sorte numa sociedade hostil. Analfabetos e sem recursos para se manterem dignamente (logo seriam substituídos por imigrantes assalariados nas lavouras), passaram a sobreviver abaixo da linha da pobreza, dando início a uma longa linhagem de marginalizados – esse histórico, aliás, é que justifica leis como a do sistema de cotas nas universidades, que visam dar oportunidade para que cada vez mais pretos e pretas furem a bolha de exclusão à qual foram relegados por gerações. Exclusão social (quando os direitos universais assegurados por lei a todos não incluem você) gera revolta, que gera desprezo pelas leis (“se os direitos não me incluem, também não cumprirei os deveres”) e desemboca na criminalidade, que alimenta o preconceito, criando um círculo vicioso sem fim.
Nem essa triste realidade, porém, justifica considerar uma manifestação cultural menor que outra, mas foi exatamente o que fez a empregadora mineira ao tentar forçar a recepcionista a desfazer o penteado que manifesta suas raízes afro.
Exemplos como esse provam que não basta só não praticarmos o racismo. É preciso aprender a enxergá-lo, em nós e no outro, e ter coragem de denunciá-lo para que, punido, as pessoas parem de replicá-lo e copiá-lo. Assim, num futuro próximo – ou distante, quem sabe? -, talvez aprendamos a educar nossos filhos livres desse viés.