** SHEILA GUIMARÃES
A poesia falava de amor companheiro, encantado com oportunidades improváveis de desfrutar dos prazeres divididos. Descrevia, poeticamente, a satisfação em limpar peixes pescados pelo marido, numa cozinha compartilhada a dois, com cotovelos se esbarrando e narrativas de pescador interpretadas pelo olhar poético de uma mulher.
Olhar encantado de quem escreve, refletido na admiração de quem lê. A leitura em voz alta teve intencional propósito de contagiar o amado de amor poético. Mas eis que a narrativa apaixonada esbarrou em ouvidos preenchidos de realidades experientes, daquele que um dia fora um tenro pescador conhecedor do ofício e sabedor de cada detalhe da arte de pescar. A cada verso reverberado em seus ouvidos, tentava disfarçar seu questionamento silencioso sobre “onde estava a beleza em escamar, abrir e eviscerar peixes”, descrita nas estrofes da poesia.
Sua alma de pequeno pescador, de tão transparente, desconsolada e descrente, causou na interlocutora uma imediata “descompreensão”: “como assim, não existe beleza na limpeza poética de um peixe?!” O desconsolo desmanchou-se em sincera gargalhada, deixando sua amada tão paralisada, que tratou logo de iniciar suas justificadas explicações advindas da sua vasta vivência de menino, filho de pai pescador.
Contou que a sua frequente desventura infantil começava em um pequeno barco, onde perdia boa parte do seu sangue ao ser violentamente atacado por vampiros e assassinos pernilongos advindos das águas navegadas. Memória viva de infância, que vem à tona para narrar sua experiência de outrora, como se o tempo decorrido não existisse.
“como assim, não existe beleza na limpeza poética de um peixe?!”
Descreveu as contrariedades de uma pescaria noturna: da retirada da rede do rio, que quase sempre trazia cobras, ao cheiro insuportável dos peixes jogados num balde ou escapados para o assoalho furado da embarcação, que, por sua vez, desprotegia os seus pés das águas noturnas.
Por fim, chegou ao ponto crucial da sua história, diametralmente oposta à da poeta, deve-se dizer: a fatídica hora da limpeza dos peixes. Conta que saltavam ele, pai, irmão e peixes de dentro do barco, esses últimos no balde cheio d’água, e seguiam rancho adentro para iniciar um precário processo artesanal de limpeza. Em meio ao cheiro, vísceras e escamas, o menino só pensava em acabar logo com aquela insatisfação e pôr fim à pescaria.
Antes de concluir a história, solta uma sonora gargalhada. Recupera-se. Finaliza: peixe fede e o cheiro não sai da gente!
Seu olhar sincero transbordou-se em poesia aos ouvidos de sua amada e sua memória de pescador compartilhada “atravessou o silêncio de quando nos vimos pela primeira vez”.
* inspirada no poema “Casamento”,
da maravilhosa Adélia Prado
** Sheila Guimarães é jornalista, designer gráfica, professora
e amiga querida
3 comentários
Que bacana! O acesso de Adélia Prado Também tem poesia visceral!!!
O melhor é que a gente vê a cena acontecendo!!!
Aaaah… a inconveniente objetividade masculina ?!