Um-ano-!

Faz um ano que nos trancamos em casa com a ilusão, pelo menos eu, de que no mês seguinte poderíamos viver pelas ruas de novo, talvez com menos contato físico, mas sem tanto medo. E um ano depois estamos aqui, mais trancados, se é que é possível. Estou com medo de respirar e o vírus chegar voando pelo ar e pelas minhas narinas ir parar nos meus pulmões. Estou com medo. Por uma amiga que acabou de ser levada para a UTI, sedada e entubada. Estou com medo e não encontro palavras e literatura que dê conta do meu pavor. Preciso andar, movimentar meu corpo para que o medo não me paralise, mas são poucos os passos da sala até o quarto e até a cozinha e de volta para a sala. E as crianças, quantos anos estão perdendo? Quantas são as pessoas chorando todos os dias? Mãe pelo filho, irmã pelo irmão, marido pela esposa, esposa pelo marido, sobrinha pela tia, primo pela prima, amigo pelo amigo, filha pela mãe, filha pelo pai, médico pelo paciente, só o presidente não chora por ninguém, e essa semana, enquanto caminhava por uma rua de casa até a farmácia pensei em escrever sobre os cacos de vidros na calçada, uma garrafa de cerveja esmigalhada, e um rapaz de olhos negros brilhantes e sorriso de dentes brancos sentado ao lado, caixa de balas no colo, sobre os dois cachorros que se aproximaram e meu pavor de o vírus voar e comer os meus pulmões, e comprei todas as balas, e de novo e de novo e de novo o pânico, e abracei meus filhos – ‘não se preocupem com as capitanias hereditárias e a raiz quadrada de dezesseis e o número pi e as capitais do país porque tudo se pode aprender sempre se estivermos vivos’  não é bem isso, não penso mesmo que seja bem assim, mas agora quero que seja, preciso que seja, ‘se deus me chamar não vou’ foi o livro da semana, a narradora com a mesma idade do meu filho mais velho, e quando nós deixamos de nos espantar com o mundo e com a natureza? Onde estão nossos olhos com onze anos? Abraço meus filhos mais do que sempre abracei até hoje, se pudessem voltar para o meu útero até o mundo todo ser vacinado, e eu voltar para o útero da minha mãe, e somos nós que parimos o mundo, vamos voltar, uma xícara de chá e outra de café e um brigadeiro no meio da tarde e um choro no banho e mais um capítulo de Harry Potter antes de dormir e sonho que posso voar e acabar com o vírus com uma varinhada. Vamos ficar bem, mãe? Vamos ficar bem? Meus onze anos. Onde estão os meus onze anos?

 

1 comentário

    • Matilde Leone em 14 de março de 2021 às 20:54

    Eu vou comer um brigadeiro no meio da tarde e tomar um chá de camomila sem olhar pela janela do meu passado e sonhar que estou num baile de máscaras que vão caindo uma a cada mês até que eu possa ver o sorriso de todos e juntos enfim podermos dançar sobre a indiferença de quem nunca nos protegeu

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