“Porque assim me diz o Senhor: ‘Vá, coloque um vigia de prontidão para que anuncie tudo o que vier’.”
Isaías, 21:16
Saiu deste trecho da Bíblia o título do livro “Vá, Coloque Um Vigia” (2015), sequência do clássico “O Sol É Para Todos” (1960), vencedor do Pulitzer de 1961 – entre outros prêmios literários. Acompanhou seu lançamento a aura de “livro perdido de Harper Lee”, já que, apesar de escrito, provavelmente, na mesma década do primeiro, seu rascunho foi encontrado só há pouco mais de quatro anos, entre o espólio da autora (não se sabe por que ela não o deu a publicar antes). Seus herdeiros autorizaram a publicação nos Estados Unidos em 2014. Harper estava, então, senil perto dos 90 anos, sem condições de opinar a respeito – veio a falecer em 2016.
No livro, o versículo de Isaías é interpretado como uma metáfora da consciência (“Vá, coloque um vigia” para sua consciência…), fonte dos tormentos da protagonista durante seu processo de amadurecimento, descrito na obra.
E a protagonista é ninguém menos do que a querida Scout, apelido pelo qual Jean Louise Finch é tratada por todo o primeiro livro. Narrado em primeira pessoa por ela, dos 6 aos 10 anos, “O Sol É Para Todos” descreve, pelos olhos da menina e de seu irmão mais velho, Jem (de Jeremy), o processo em que o pai de ambos, o advogado Atticus Finch, defende um negro injustamente acusado de estupro por uma branca. Isso na pequena comunidade sulista – entenda-se extremamente racista – de Maycomb, no Alabama (EUA).
“Vá, Coloque Um Vigia” encontra Scout adulta, aos 26 anos, com consciência e valores praticamente indissociados dos de seu pai. Entre flashbacks de sua adolescência e de sua ida para Nova York, acompanhamos a jovem descobrir-se um “peixe fora d’água” na cidade natal, até sofrer o “choque de realidade” que a fará rever o altar moral no qual colocava Atticus.
Neste ponto, a narrativa, que vinha morna e saudosista, comparando a velha e a atual Maycomb, mergulha em diálogos filosóficos: entre Jean Louise e sua própria consciência; entre ela e seu velho tio Jack (o médico intelectual-pensador da família), dela com o namorado e… o derradeiro… entre a protagonista e seu pai. No cerne de todos eles, a sociedade e seu comportamento de “manada”, seus preconceitos de raça e credo, temas atuais ainda hoje (infelizmente!), passados quase 60 anos.
Jean Louise precisa emergir de todos esses embates morais com identidade e valores próprios e, para isso, terá que decretar algumas “mortes” (de ao menos um ídolo, da própria inocência, entre outras personas).
Para quem aprecia leitura para além do simples entretenimento, é um prazer deixar-se enredar por esses diálogos, embalados por um humor irônico, que, em minha opinião, são a maior prova do grande intelecto da autora.
Por tudo isso, “Vá, Coloque Um Vigia”, como seu antecessor, é um daqueles livros para se ter e reler sempre que precisarmos nos reconectar com nossas noções de humanidade.
Super recomendo!
“O Sol É Para Todos” foi adaptado para o cinema em 1963. Dirigida por Robert Mulligan (de “Houve Uma Vez Um Verão”), sua versão cinematográfica rendeu o Oscar de Melhor Ator para Gregory Peck (na foto com a autora, Harper Lee, em 1962, durante as filmagens), e de Melhor Roteiro Adaptado para Horton Foote. Também virou clássico! (Na torcida para algum diretor decidir filmar sua sequência em 3, 2, 1…)
1 comentário
Esse título abre tantas imagens, né? Gostei do momento Feira do Livro!