Velho telefone mudo

LUÍS FERNANDO LARANJEIRA *

Há muito aquela casa já não era mais minha, apesar da herança. Foi lá que nasci, cresci e dela saí com o firme propósito de nunca mais voltar. Durante muitos anos fui “visita” naquele imóvel construído com tanto sacrifício por meu pai, resultado de todas as suas economias, primeiro pra comprar o terreno, depois pra levantar quarto e sala e ir aumentando conforme minha irmã e eu crescíamos.

Um quarto pra ela que, mais velha, não gostou nada de dividi-lo comigo quando eu, ainda pequeno, não tinha mais espaço no berço que herdei dela própria. Um quarto pra mim quando comecei a crescer e já não dava mais pra dividir com uma menina. Tempos depois, minha mãe quis aumentar a cozinha e desfrutar de uma copa. Ruim pra mim que perdi uma parte do quintal onde, tantas vezes, sozinho, minha imaginação criou um campo de futebol, pista de atletismo, florestas, desertos, onde montava o forte apache – os índios sempre ganhavam as batalhas. Ali, vivi inúmeras aventuras na minha então cabeça tão criativa.

Hoje, um cinquentão, meio jornalista, meio professor e desejando ser artista, sinto falta de tamanha imaginação e capacidade de criar ambientes que, na minha cabeça sonhadora de moleque pobre do interior, criava num pequeno espaço cimentado cercado pelos muros das casas do seu Otacílio e do seu Jurandir e a parede da casa do seu Waldemar. Ali era meu mundo. Um mundo povoado também pelo Céca ou Séca, um vira-latas que eu levava pra passear todas as tardes e foi um inseparável companheiro na infância; e, posteriormente, pelos gatos Simone, Nego, Zacarias, Menina, Bola.

Fora de meu território, havia as brincadeiras na rua com os moleques da vizinhança. Bicicleta, gol a caixão, bolinha de gude, bafo, bets, soldado e ladrão, pipa, carrinho de rolimã, mana mula, jogo de botão, horas e horas de conversas jogadas fora sob a sombra da árvore em frente à casa de seu Otacílio. Isso sem contar que todos os terrenos próximos eram impecavelmente roçados e limpos para nossos jogos de futebol.

Mais tarde, passei a ocupar também um canto da sala, junto à sonata. Ali, eu fazia a programação musical e noticiosa de minha emissora de rádio imaginária. Meu pai gostava de ler o Diário da Noite ou a Folha da Tarde e era desses jornais que eu tirava a pauta do meu programa jornalístico, sempre mesclado com muita música e até uns efeitos sonoros. Eu era pauteiro, contrarregra, âncora, repórter, redator e editor ao mesmo tempo. E fazia também rádio escuta com o ouvido colado no radinho de pilha que meu pai utilizava pra ouvir os jogos da Ferroviária e do Corinthians.

A chegada, finalmente, do telefone coincidiu com minha entrada na adolescência. As prioridades e interesses foram mudando. Novas amizades, as primeiras paixões, novas fantasias. Horas trancado no banheiro. E o telefone passou a ser item obrigatório, de primeira necessidade. A expectativa pelo toque, esperando pra um papo-cabeça com algum amigo ou as palavras doces da namoradinha de então.

Está lá até hoje o telefone, no mesmo lugar. O mesmo aparelho, feio, pesado, daqueles de discar, de cor gelo desgastada pelo tempo. Quantas recordações. Quantas conversas. Quantas articulações e mobilização pela revolução, quantas declarações de amor. Até brigas.

Agora, tantos anos depois, no retorno àquela casa que tão pouco mudou, carregando uns cabides, caixas de sapato e de livros e CDs, me pego observando o que restou do quintal, as velhas portas, o corredor que já me pareceu imenso, o antigo quarto; e sofro por não conseguir me lembrar de tantos outros momentos, tantas outras coisas e acontecimentos que foram marcantes, alegres. Alguns tristes também. Quantos sonhos, planos, decepções. Aos poucos, volto a me sentir bem nesta casa.

Me pego caminhando a esmo pelos aposentos tão conhecidos. Paro, observo as maçanetas já um tanto enferrujadas, as velhas torneiras, antigos móveis, os cantos onde me aninhava ou gostava de ficar sonhando ou escrevendo minhas primeiras mal traçadas linhas ou ouvindo velhos discos. A cozinha me traz de volta minha mãe preparando a comida e me dando dicas de como fazer esse ou aquele prato; alguns, até me arrisco a fazer hoje e chego a receber elogios pelo sabor, tempero ou textura.

Vejo-me envolto em recordações e fazendo novos planos. Às vezes, baixa em mim o garoto sonhador que, como Cazuza, queria mudar o mundo ou viajar sem rumo, apenas pra conhecer novos lugares e pessoas, ouvir histórias e contar as minhas. São boas tais recordações, me trazem sentimentos e emoções há muitos esquecidos, que pensava até já ter perdido. Em determinados momentos, a sensação é de estar flutuando nessa velha casa, flanando descompromissado. Mas também sonho e tento projetar o que pode vir a ser o futuro.

Só o que me entristece é que aquele velho telefone que já foi tão importante, tão cheio de significados, não toca mais. Está mudo.

 

(*) Luís Fernando Laranjeira
Jornalista, professor, piadista, anfitrião caloroso, pai do Vitor e do Thiago e
“companheiro de trincheiras”


 

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1 comentário

    • Mariangela em 1 de novembro de 2017 às 21:51

    Parece muito com a sensação que tinha quando visitava o casarão da familia.

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