Viagens na pandemia

Foi logo no primeiro mês de isolamento que meu filho mais velho me disse:

“Mãe, você está traumatizada com essa pandemia, né?”

E a resposta à minha pergunta “por que você está falando isso?” foi:

“Você está descobrindo que não suporta a sua família”.

“Não suporta” foi forte demais, respondi para ele. Mas, sim, eu continuei, ele não deixava de ter razão: é mais fácil (e saudável) conviver quando a gente não fica com a pessoa o dia todo, vinte e quatro horas por dia (literalmente e sem exageros). Seja essa pessoa quem for. Seja essa pessoa aquela para quem um dia você olhou e disse, acreditando que era verdade, até sendo verdade mesmo: eu passaria o resto da minha vida grudada em você (pequena homenagem ao dia dos namorados).

Eu, particularmente, acho que nunca disse essa frase para ninguém. A ideia de grude nunca me atraiu. Grudados em casa, então, so-cor-ro! Porque nem da ideia de casa eu gosto muito. Desde que saí da casa dos meus pais, minhas casas estão sempre com cara de quem acabou de receber os hóspedes. E faz um tempo que entendi a razão: nunca acho que cheguei ao meu lugar, toda casa me parece temporária e aquela arrumação definitiva fica sempre para depois. E tanto é assim que vendi uma casa própria e nunca consegui substitui-la (tem a falta de dinheiro suficiente, tem o pavor de fazer dívida com o banco por 475869097 meses com juros de 177294840292727174748484949393% ao mês e tem uma casa que nunca achei). Desde então, moro de aluguel. Se tiver que arrumar demais, se tiver que mexer demais, se simplesmente eu precisar mudar de bairro ou cidade, rescindo o contrato e mudo.

Talvez seja o sangue croata. Há relatos de que os ciganos se concentraram em países como Iugoslávia, Bulgária e Romênia.  Sempre gostei da rua, das casas dos outros, daquilo que não me é familiar. Na infância, tinha escovas de dentes nas casas de várias amigas. Bastava ouvir “quer dormir em …” para já responder com um “sim”. Talvez o final da pergunta nem fosse “em casa”, mas eu já estava pronta. Além da companhia das amigas, claro, tinha sempre uma comida que eu não conhecia (o lanche de frango da Tia Rê), um hábito que não existia na minha casa (tomar lanche da tarde na casa da Patrícia), um som (o violão do Tchê), espaços (o quintal com cachorros na casa da Mariana), luzes (amarelas na casa da Mette) e eu me encantava com cada detalhe capaz de ampliar meu mundo.

E, sim, eu gostava muito da casa dos meus pais. Gostava muito da minha casa. E na minha casa também eram várias as escovas de dentes das amigas. Cada uma com um nome, todas guardadas na primeira gaveta do gabinete embaixo da pia. Uma casa cheia de amigas e amigos. Então não era uma questão, como não é até hoje, de não gostar de ficar em casa. É só uma questão de “mas tem tanta coisa para ser vista lá fora”. Uma amiga, espírita, uma vez me disse que sou espírito jovem, encarnado poucas vezes, daí a vontade de conhecer tanto o mundo. Pode ser. Eu sei muito pouco sobre nada.

Mas sei que em 2020 resolvi voltar a fazer diário. No dia primeiro de janeiro listei todos os lugares que ainda quero conhecer e coloquei um asterisco naqueles que achei que seria possível conhecer ainda este ano. A lista segue lá e não deixei de acrescentar lugares. Não eliminei, ainda, os sonhos. Mas, por enquanto, viagens mesmo só com os livros (aliás, os únicos objetos definitivamente arrumados em todas as casas temporárias), em cantinhos da casa onde gosto de estar, de preferência longe dos meus filhos na hora da leitura. Até para eu poder olhar para eles depois de deixar o cantinho e me encher de amor e gratidão.

1 comentário

    • Vania Ventura em 12 de junho de 2020 às 23:04

    Me identifico tanto com suas histórias! Dá até vontade de escrever também. E de falar para vc continuar a colocar com palavras aquilo que o nosso coração está cheio.
    Obrigado por partilhar seus sonhos…sua vida.

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