A Mão de Carolina

O que mais tenho visto nesse isolamento é a tela do computador. Mas, ainda que pelo canto dos olhos, tenho reparado, em silêncio, nos meus filhos. Os pés quase do tamanho dos meus. Uma penugem sobre os lábios do mais velho. O modo como se sentam, o mais velho com as costas eretas e as pernas esticadas, o mais novo sempre de cócoras, até à mesa enquanto come. Quantas frutas um come por dia. Quantas bolachas o outro. Uma voz que agora oscila entre o grave e o agudo. A outra infantil. Apuro os ouvidos.

Tenho a sensação de que é da voz infantil do que mais sentirei falta no futuro, quando o ninho ficar vazio, como dizem. Estou sempre com o celular na mão para tentar gravar uma fala, uma cantoria no chuveiro, um diálogo, mas eles logo percebem e me pedem para parar a gravação, não entendem uma mãe que antecipa tantas saudades. Agora mesmo, enquanto escrevo, não os escuto, e a aflição já me toma. Sim, as brigas, as discussões, as manhas e reclamações me cansam, mas nesse isolamento cada um deles se grudou ainda mais nos meus poros, como se isso fosse possível. Observo-os, ainda mais, tudo ainda mais, enquanto dormem. Meus dedos contornam narizes e bochechas e bocas. Toco os cabelos, beijo pés e mãos. E sempre aperto as carnes generosas dos bumbuns. Um deles me fala que parece que os tive apenas para poder apertá-los. Eu confirmo. Ele reclama que a existência deles é maior do que isso. Eu digo que não, que são meus e só meus e sempre meus e os aperto ainda mais. Quero-os às vezes de volta ao útero, só para um descanso, só para ter a sensação de que posso protegê-los.

Na hora de dormir me abraçam, perguntam se vai ficar tudo bem, se vou sempre cuidar deles, eu digo sim, sempre sim, na tentativa de que não percebam que são eles, na verdade, que me protegem. Desde que nasceram, ou desde que me tornei a pessoa mais medrosa desse mundo, ganho coragem e energia quando tenho minha mão encostada neles. Era assim quando estavam no berço e o monstro do medo ameaçava me agarrar pela garganta. Eu corria até o berço e encostava meus dedos na bochecha, na mãozinha, no pezinho, e o monstro me soltava.

Depois de alguns anos, eles tinham toda razão em quererem usar capas de super-heróis. No começo deste ano de 2020 prometi que ficaria mais em casa, um pedido deles já antigo. Veio a pandemia e um deles me disse que esse vírus até parecia uma coisa encomendada por mim. Mas continuo trabalhando tanto, eu respondi, passo o dia com a cara enfiada nesse computador. Mas está em casa, foi a réplica, onde a gente pode te ver. Imagino que pelo canto dos olhos, como tenho feito com eles. Cada um na sua tela, mas ligado na presença do outro.

E essa semana comecei a reler “Quarto de despejo”, da Carolina Maria de Jesus. A inteligência e a elegância de Carolina me comovem de tal maneira que tenho o livro todo grifado e repleto de recados para a autora. Gostaria tanto de acreditar que ela, de alguma maneira, pode recebê-los. Mas talvez passar sua obra para que outros leiam seja o melhor que eu possa fazer – não por ela, mas por quem vai lê-la. E de tudo o que me toca no livro, e tudo me toca muito, nada se compara às palavras dedicadas aos filhos. É quando tenho vontade de segurar na mão dessa mulher e mãe e leitora e escritora e apertá-la bem forte, para que ela, como meus filhos, me encoraje.

Eu não sei o que você está fazendo agora, mas pare e leia Carolina Maria de Jesus.

1 comentário

    • Milca Cabral em 12 de julho de 2020 às 03:00

    Esse texto faz a gente sentir saudade de outras épocas. Fiquei com vontade de ler o livro da Carolina Maria de Jesus… vou ver se encontro aqui, porque moro na Espanha, mas quero ler ele em português, no idioma que foi escrito pra não perder a essência… adorei do texto 🥰

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