Amém

Meu ombro e meu braço direito ainda doem, mas já consigo digitar sem fazer tantas caretas e soltar alguns ais e uis. Digito devagar, no ritmo que a dor me impôs. É como dizem: uma hora o corpo te obriga a diminuir o ritmo. Só parece que não sou inteligente o suficiente para aprender a lição de forma definitiva. Porque já fui obrigada a diminuir o ritmo antes. Morar em São Paulo talvez não ajude, onde partículas de ansiedade podem ser captadas no ar. Só que eu amo São Paulo. E aprendi a entrar em alguns lugares (quando podíamos andar pelas ruas) quando me sentia sufocada pelos passos apressados nas calçadas e pelas buzinas tocadas por pessoas à beira da insanidade: livrarias principalmente. Com café então, era como sair do inferno direto para o paraíso. Perto dos livros, a calma me toma. Cada um com seu templo.

Nesses dias de dores, tantas outras além daquela no meu braço e ombro (a pandemia não acabou, as crianças continuam trancadas em casa, nossos pais, assim como nós, seguem envelhecendo, o dinheiro nem sempre dá para as contas, continuamos matando jovens negros), sigo na companhia dos livros e das personagens que misturo com pessoas de carne e osso que conheço. Será que alguém me entende quando digo que Carolina Maria de Jesus tem segurado a minha mão em vários momentos? Estanco um grito e escuto sua voz me encorajando: vai, filha, vai… Escuto Kehinde, escuto Amina, escuto Anna, escuto minha vó Cida e minha vó Eslava, escuto minha mãe: vai, filha, vai…

Como você lê tanto, Luciana, como consegue? A pergunta que escuto quase diariamente. Você não trabalha (sim, e trabalho muito com livros)? Você não come (sim, bastante, muitas vezes lendo ao mesmo tempo)? Você não dorme (pouco, é verdade)? Você não vê tevê (quase nada)? Algumas perguntas são mera curiosidade. Algumas vêm com o peso da afronta: só uma pessoa tão desocupada pode ler tanto assim, não? Algumas vêm revestidas de receita doce:

Sabe por que você tem essas dores, Luciana? Porque você não reza.

Dei de ombros (mesmo dolorido – quiçá por falta de reza). Como já disse: cada um com seu templo. Eu já rezei com texto de Clarice Lispector. Não peço que ninguém reze comigo. Em troca, espero que ninguém me obrigue a rezar de modo diferente.