Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2022 também assessora de comunicação; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

Estamos prontos? *

Entramos em 2018 como em todos os anos anteriores: saboreando ceia, assistindo a fogos, superlotando shows da Virada, sujando praias no Réveillon e curando ressacas. Nos noticiários, o que tornou-se comum nos últimos quatro anos de atuação exemplar de Ministérios Públicos e Polícia Federal: denúncias e acusações de corrupção em todas as instâncias dos poderes Executivo e Legislativo.

Pergunto-me se todos nós, que formamos a grande massa de trabalhadores a arcar com as consequências dos desvios de verbas públicas, já nos conscientizamos de que 2018 não é um ano qualquer… que as eleições marcadas para o segundo semestre não têm a mesma importância das anteriores.

Serão as primeiras eleições presidenciais de uma época em que começamos a enxergar… a ter evidências da corrupção que sempre suspeitamos existir nos bastidores dos poderes que regem nossas vidas cidadãs, e que esse modus operandi contamina a máquina pública muito além do que imaginávamos ou temíamos.

“Minha dor é perceber que apesar de terem feito tudo o que” fizeram, os políticos ainda são os mesmos e vivem como seus antecessores (com o perdão da paráfrase remendada, mestre Belchior!). Ainda vemos um presidente pagar desgaste atrás de desgaste político para atender a fisiologismos partidários; a legisladores votarem – ou não – em projetos que mexem com nossas vidas motivados por acordos e barganhas que os beneficiam pessoalmente, sem a menor preocupação conosco, mas com nossos votos.

Fico pensando se estamos prontos – e, mais importante, se temos coragem – para trocar essa “escola política” por novos rostos e nomes. Mais: será que teremos outros rostos e nomes para formar uma “nova escola política”, na qual possamos depositar confiança e esperança?

2018 será o primeiro ano do resto de nossas vidas cidadãs. Estamos prontos para fazê-lo melhor?

 

* Artigo publicado no jornal A Cidade, em 1º de fevereiro de 2018

Nada a comemorar

Quando uma condenação por corrupção ocorre em um desses países orientais supercivilizados, como a China, as reações, tanto da população quanto dos acusados, costumam ser de vergonha genuína. Pais perguntam-se: “o que fizemos de errado?” Políticos desculpam-se (quando não se suicidam).

No Brasil, os políticos negam tudo até a mais amarga condenação e a população divide-se em um “fla-flu” político. No caso específico da de Lula, muitos foram para a rua comemorá-la com fogos e pixulecos, como numa final de campeonato vencido por seu time – se o resultado tivesse sido outro, os partidários de Lula teriam feito o mesmo.

Desculpem se soo petista para uns e “coxinha” para outros (o “fla-flu” tende a essas simplificações), mas não consigo enxergar motivo para comemorar em nenhum dos casos. Não torci para o livramento de Lula, mas tampouco estou feliz com o que sua condenação e a de tantos outros dizem sobre nosso País e sobre nós mesmos. Nem com como isso reflete em nossa identidade cidadã ou em nossas noções internas de justiça, que influenciam nossas tomadas de decisões no dia a dia – de respeitar uma lei de trânsito a ensinar um filho que não se deve fingir uma falta no futebol.

Além do mais, a punição de um ou dez corruptos não acaba com toda a corrupção. Em estruturas de poder contaminadas, como as nossas têm se mostrado, sempre há os que ficam para inventar novos modos de corromper sem ser pego ou chegam novos corruptos para substituir os antigos.

O que rompe esse ciclo é educação e não estou falando só da formal – até porque esta muitos corruptos tiveram e da mais cara que o ensino particular pode fornecer -, mas da moral, que vem de berço e sofre uma grande influência do consciente coletivo, formado por um conjunto de práticas em sociedade.

Tantas condenações mostram o quanto estamos falhando nisso e que não temos, na verdade, nada a comemorar.

* Artigo publicado no jornal A Cidade em 25/1/2018

 

Carta aberta a um deputado

Caro deputado Beto Mansur:

Entendo que, como vice-líder do governo Temer na Câmara Federal, o senhor tenha lá que defender as decisões do mandatário, mas saiba que isso não lhe dá o  direito de subestimar nossa inteligência.

Suas últimas declarações sobre as decisões judiciais que têm impedido a ministra Cristiane Brasil de tomar posse na pasta do Trabalho chegaram a me dar ânsias de indignação (“Não importa que um ministro do Trabalho algum dia teve uma ação judicial no Ministério do Trabalho. Senão nós vamos ficar preocupados agora que o ministro da Saúde não vai poder ser fumante, que o Ministro dos Transportes não vai poder ter multa de trânsito… Aí nós vamos ficar loucos no Brasil”).

Com o perdão do vocabulário, deputado, a quem o senhor acha que engana com esse papinho “malandro 171” versão “colarinho branco”?

É claro que um ministro do Trabalho com histórico de desrespeito às leis trabalhistas e um Ministro dos Transportes com multas de trânsito não têm moral nenhuma para assumir tais cargos e merecem toda a nossa desconfiança, por motivos óbvios (se não fazem a “lição de casa”, muito menos os deveres principais) – a analogia ao “ministro da Saúde fumante”, o senhor me desculpe, mas é digna de ignorar, pois fumar é uma escolha pessoal que não agride a lei nenhuma que um ministro da Saúde deva defender.

Mas é claro que o senhor sabe muito bem disso tudo, pois duvido que confiaria, por exemplo, o seu rico dinheirinho de parlamentar a um consultor de investimentos com histórico de perdas financeiras.

Da mesma forma, senhor Mansur, nós não temos que engolir diretores de Ciretran com 120 pontos na CNH ou ministras do Trabalho com R$ 74 mil em dívidas trabalhistas.

Sobre “ficar loucos no Brasil” à procura de ministeriáveis sem histórico desabonador o senhor fale apenas por si mesmo, pois este país tem, sim, gente honesta, competente e capaz de assumir cargos de gestão. Mas, claro, o senhor e seus pares não devem conhecer mesmo (cheguem, eleições!).

(*) Artigo publicado no jornal A Cidade em 18/1/2018

Novo ano, velha saudade

O ano começou pra mim requentando saudade antiga de perdidos dezembros.

Mora dentro de mim desde a primeira infância, nascida de lembranças que até hoje me vêm como as mais felizes de todas, porque de uma felicidade genuína e plena, como só as crianças conseguem sentir.

Sobraram delas apenas flashes de imagens, mas a lembrança do sentimento está intacta, como se eu o tivesse sentido ontem.

Começavam sempre em dezembros essas lembranças, quando ouvíamos uma buzina alucinada à porta de nossa casa, na avenida de terra à beira de um ribeirão Preto margeado de mato.

Ainda enxergo na tela da memória meu tio Silvio (a quem devo meu nome) à direção de sua Belina, que chegava lotada com minha tia, primas e – nas últimas visitas de que me lembro – também de meu primo temporão, Silvinho.

Marlene, Silvinho, Márcia, tia Célia, tio Silvio e Margareth agachadinha: morro de saudades!

Chegavam sem avisar (era um tempo em que telefone em casa era coisa pra ricos) e não enxergávamos o menor problema ou indelicadeza nisso. Ao contrário, celebrávamos extasiados a surpresa, que sempre inundava os ânimos de minha família de um clima de festa, celebração, alegria.

A criança que fui respirava dentro desses dias como se dentro de um sonho bom, desses de que a gente nunca quer acordar.

As noites terminavam tarde e a hora de dormir transformava os chãos dos quartos e sala em um mar de colchões forrados com toda a roupa de cama que houvesse na casa.

Ainda me fecha a garganta a saudade de tardes de cantoria ao violão… a imagem de meu pai arranhando as cordas com seus poucos conhecimentos de acordes… o tio improvisando percussões e a filharada espalhada pelo chão acarpetado. A mãe e a tia ouviam tudo da cozinha, mobilizadas nos afazeres das refeições.

Às vezes o tio colocava a criançada mais nova no carro e saía a passear pelas ruas do bairro, àquela época muito tranquilo, meio esquecido até pelos carros, pois que suas ruas morriam todas no rio sem pontes.

Vez ou outra ocorria de rolar um sorvete, mas era raro. Não éramos famílias para ter dinheiro fácil para pequenos prazeres. Mas não lamentávamos porque, na verdade, não se sente falta do que não se permite desejar.

O tio sempre me cobria de mimos, abraços… chamegos que brotavam naturais, sem maldades, do mais puro amor.

As primas, muito mais velhas que eu, me mimavam.

Eram visitas em que eu me sentia envolvida em muito amor e alegria.

Cessaram de repente, por volta de minha puberdade, nunca entendi direito o porquê, e eu passei a cozinhar saudades silenciosas todo dezembro.

As famílias se distanciaram. Primas e primos casaram-se e tiveram filhos sem se avisar.

Enfim… a vida aconteceu nas distâncias, com cada um tangendo a sua sem pensar ou lembrar que um dia as pessoas se vão sem volta.

Nos últimos anos eu e minhas irmãs retomamos contatos via rede social com os primos, principalmente Silvinho que, prodígio desde criança, tornou-se pedagogo, enólogo por hobby, marido e pai amoroso, como o fora meu tio até o fim.

Tio Silvio morreu no último dezembro (logo neste mês).

Meu pai não pode despedir-se, pois recuperava-se no hospital de três cirurgias intestinais, que nos surpreenderam quando ainda lidávamos com um infarto sofrido por mamãe.

Não contamos logo. O médico aconselhou esperar ele ficar mais forte. Quando soube (fui eu a contar), chorou muito. “Ele não foi um irmão, foi um pai. Ajudou a me criar  e os outros irmãos”, justificava entre soluços.

Não chorei, pois o sabia sofrendo de um câncer avançado.

Evoquei o amor que ainda mora dentro de mim nas orações que lhe dediquei e agradeci a Deus por ele e por todo o amor que me fez sentir.

Descanse em paz meu amado tio!

Fica com Deus.

Necrológio

Para fazer um necrológio de 2017, que agoniza, tenho a dizer que foi o melhor “pior ano” de minha vida.

Pior porque passei o primeiro semestre dele recuperando-me de um acidente grave e o segundo tentando administrar acontecimentos difíceis: uma readaptação complicada à rotina de trabalho; um AVC e um infarto de minha mãe; dois meses de hospitalização de meu pai por conta de três cirurgias de intestino; o desencarne em circunstâncias tristes de pessoas queridas – meu cunhado-irmão Nando, meu amado tio Silvio Pereira (a quem devo meu nome), o amigo Lau.

Mas também foi o melhor ano porque o termino feliz e serena como em nenhuma outra virada antes, graças a um abençoado mecanismo psicológico que começou a funcionar dentro de mim… um que me fez olhar de outra forma para coisas e pessoas que já tinha antes de cada acontecimento ruim e que me fez perceber quanta sorte tenho por cada uma delas.

O resultado desse mecanismo é um sentimento cujo nome foi campeão de citações nas redes sociais este ano, tendo merecido até matéria em televisão: gratidão.

Eu sei que nem sempre esta hashtag é usada com sinceridade nas redes, mas meu recém-desperto otimismo (outro sentimento que estou aprendendo a exercitar) me leva a acreditar que esta palavra não virou modismo à toa.

Talvez todos os fatos ruins que vêm ocorrendo em nível mundial estejam despertando este mesmo mecanismo em milhares de outras pessoas mundo afora.

Talvez essas milhares de pessoas estejam aprendendo, a  partir do sofrimento, a valorizar o que lhes resta de bom em vez de só chorar pelo que sofrem.

Talvez a nova era que místicos e espiritualistas prometeram para este milênio esteja sendo construída a partir desse sentimento-alicerce.

Muitos “talvez”, eu sei, mas depende de cada um de nós transformá-los em certezas.

Tentarei fazer minha parte. É minha promessa de Ano Novo!

Despedidas

Hoje não tenho palavras

Não jorra palavreira do meu luto

Não transborda alma na forma escrita.

Hoje só brotam despedidas de meus dedos

Oro

Que partam em paz todas as minhas perdas

Que vivam melhor na próxima vida

Que amem tanto ou mais

Que vivam para sempre

Virem estrelas

Sejam para sempre luz!

Perdemos o LAU BAPTISTA

Vai em paz, meu amigo!

Os anjos te guardem.

Herança

Meus pais sempre foram lindos.

Não é uma metáfora. A genética foi mesmo generosa com eles, preservando em suas aparências o melhor de vários mundos presentes em suas genealogias.

Não conheço meus antepassados anteriores aos meus avós, mas sei que mamãe ficou com os olhos verdes, a pele alva e os traços angulosos de meu avô lituano, mais o corpo curvilíneo de minha avó interiorana.

Meu pai manteve a altura e a magreza atlética de meu avô afro-brasileiro, neto de escravos (muito bem aproveitados em sua breve carreira no futebol). Mas a morenice café-com-leite e o cabelo mais liso-ondulado que crespo ele deve aos genes de sua mãe, descendente de índios.

Quando criança, eu costumava me orgulhar ao levar colegas de escola à minha casa pela primeira vez: “Como sua mãe é linda!”; “Que homão que é seu pai!”, era certo de ouvir.

Na adolescência, o alto grau de surpresa de tais exclamações chegava a me incomodar um pouco: “por que você mesma não é bonita assim?”, ouvia eu nas entrelinhas.

Vi em minhas irmãs desde sempre as belezas e feminices de mamãe, mas demorei a deixar de ver em mim só a herança de papí (as três filhas o chamam assim), que me valeu uma aparência andrógina até a puberdade. “Ei, menino…”, chamavam-me no ônibus, na rua.

Os hormônios só começaram a desenhar em mim as curvas de mamãe no início da fase adulta.

Talvez, de tanto ter pedido a Deus naquela época, hoje tenho de todos da família um pouco (tá… faltaram-me os seios maiores que minha irmã do meio herdou de nossa avó materna, mas não se pode ter tudo).

Ainda me assusto quando, às vezes, olho no espelho e penso estar vendo minha irmã mais velha. Ou quando me ouço pigarrear o refluxo da garganta como ouvi mamãe fazer a vida toda – uma família inteira com hérnia de hiato. Não gosto de chocolates e de desordem, como minha irmã do meio, e minhas pernas têm o desenho reto e pouco feminino das de meu pai, embora (que raiva!) tenham copiado os culotes de minha mãe.

Acompanhando papí no hospital, onde ele se recupera de cirurgias no intestino delgado, descobri uma nova semelhança. Cortando suas unhas, parei a admirar suas mãos ainda enormes, mesmo estando ele tão magrinho. Mãos de meu avô negro, de dedos retos, unhas largas e palmas claríssimas. Minha mão esquerda pareceu uma versão infantil da sua quando sobrepus à dele.
Como nunca percebi antes que as mãos que eu sempre quis finas e de unhas estreitas e alongadas como as de mamãe eram, ao contrário, cópias menores das mãos de goleiro de meu pai?

Hoje observo ambos velhinhos e entendo estar olhando para um espelho precoce, que devolve o reflexo de um futuro possível.

Não me assusto.

A juventude deixou suas aparências e seus corpos, mas eles ainda são lindos. Os cabelos ondulados de mamãe agora são de um branco laminado e seu sorriso ainda é o mesmo, de dentes grandes, que se projetam pra além dos lábios, como se mal coubessem dentro deles.

Papi quase não tem rugas no rosto ainda bonito, a despeito das olheiras fundas de agora.

Não tenho pressa de descobrir com qual dos dois me parecerei quando tiver a idade deles, mas tenho medo da falta que sentirei de me procurar neles quando não estiverem mais por aqui.

“Tempo, tempo, tempo, tempo…”

 

Pandora

Escrevo esta crônica sob encomenda, de homenagem pedida e com gratidão cerzida numa oração.

Meu amor pede homenagem a dois seres que se amaram muito na Terra e devem estar brincando juntos agora no céu.

Pandora, nossa Pan… minha “sobrinha” labradora linda, amada e amável até o fim foi encontrar nosso Nando em outro lar.

Já andava numa tristeza de lastimar, sem entender pra onde tinha ido um de seus “pais”, que partiu de repente, sem aviso e preparação nenhuma pra nossos corações.

Vi a Pan chegar filhotinha a nossas vidas, com certificado de pedigree e tudo e já com uma displasia que parecia desconjuntar seu quadril quando andava.

Mas quem disse que isso lhe freava a hiperatividade? Não andava, corria. Não abraçava, derrubava-nos pulando com as duas patas em nosso peito pra cobrir de lambidas nossos rostos e de cheiros nervosos nosso cangote.

Quando estava pra chegar de visita à casa de minha sogra, onde me hospedo em Jaú, Marcio vinha avisar: “Põe sua roupa de guerra”. E lá ia eu rolar com a Pan pelo quintal amplo deixando minha roupa da cor do chão.

Por esse quintal ela corria numa alegria de dar gosto atrás das bolinhas que jogávamos de um pro outro para exercitá-la – três marmanjos se lambuzando daquele amor delicioso que as crianças e os PETs conseguem despertar.

A brincadeira sempre acabava com o Nando enchendo uma bacia grande de água pra ela se jogar dentro extasiada de prazer.

Como boa labradora, amava água. Cumpria feliz o compromisso semanal de exercitar-se em um aparelho fisioterápico – espécie de esteira montada dentro de um tanque d’água – no consultório de uma veterinária, para tratar a displasia. Nadava com desenvoltura e prazer genuíno com o Nando na piscina de sua casa.

Dava gosto ver como amava esse “pai”. Deu dor em nossos corações saber que ela mergulhou numa tristeza só depois que ele se foi (ainda agora me fecha a garganta lembrar).

Mas não há mais pelo que chorar. Deus sabe o que faz. Chamou a Pan pra junto do Nando ontem de manhãzinha e agora eles devem estar correndo juntos pelos campos do Senhor (nosso amor com eles).

Amém!

Sobre Anjos – parte II

Subo as escadas sentindo uma dorzinha nova no tornozelo direito, vinda não sei de onde, não sei por que raios! Passa das 23h30 quando viro a chave para entrar no apartamento vazio já sentindo a falta de Márcio, de quem me despedi na hora do almoço para mais uma separação de 15 dias (longa história).

Estou cansada e ainda é só quarta-feira!

Levo um susto ao encontrar a sala iluminada – tenho certeza de que não deixei a luz acesa – ao mesmo tempo em que um cheiro surpreendente de comida bem temperada me assalta o olfato – sequer cozinhei nos últimos dias!

(medo)

Avanço taquicárdica até a cozinha, onde encontro sobre o fogão uma panela com arroz novo, outra com feijão recém-temperado, uma assadeira com torta de frango sobre o microondas, a salvo dos gatos.

Abro a geladeira sentindo-me o pequeno Charlie entrando no jardim feito de doces da Fantástica Fábrica de Chocolate de Willy Wonka. Encontro, já acondicionados em vidros, filés de frango assados, purê de batatas e uma carne moída refogada com legumes.

Desconfio, antes de ouvir um certo recado de áudio deixado no WhatsApp, a identidade de minha fada-madrinha… no caso, faxineira-madrinha.

Kelly fazia faxinas para mim já há dois anos quando sofri o acidente de moto que me quebrou as duas pernas. Acompanhou discretamente meus esforços de recuperação e, quando ocorreu a última tragédia de nossa vida – a morte de meu cunhado e a consequente “mudança” de meu marido de volta à casa de sua mãe, em Jaú –, revelou-se sua inestimável solidariedade. Ante minha locomoção ainda limitada, ofereceu-se para cozinhar para mim nos dias de faxina sem cobrar nada a mais.

Claro que acrescentei um adicional ao valor de sua diária, mas o que ela passou a fazer por mim não tem preço. A cada dia de faxina, preocupa-se em cozinhar uma quantidade de comida variada que dure a semana toda – tudo separadinho em vidros que podem ser congelados e descongelados individualmente.

Nesta semana, avisou que não poderia vir na quarta, como de hábito, pois tinha algum compromisso. Viria na quinta. Mas apareceu sem avisar  no fim da tarde da quarta (tem sua própria chave da porta) e fez toda essa adorável comida.

Não resisti ao carinho… digo, ao cheirinho… e jantei àquela hora mesmo.

Quase meia noite, eu “batendo” um prato de arroz com feijão novos – muito mais feijão que arroz – e um generoso pedaço de torta de frango, quando percebo um novo aviso de mensagem no Whatsapp.

O áudio de minha irmã mais velha avisa que nossa mãe acaba de sofrer um infarto e aguarda vaga em algum hospital do SUS para internação.

Esqueço a comida.

Em uma conversa rápida e nervosa ao telefone descubro que mamãe começou a sentir dores à tarde e foi levada para a UPA de Araraquara pela amiga que lhe fazia companhia – graças a Deus! -, mas ainda carecia de cuidados e tratamento. Minha irmã passa o celular para ela, que faz uma voz calma, com a qual tenta me tranquilizar (ELA… A MIM!).

Tento disfarçar os sintomas de pânico que costumam disparar meu coração e acionar reações desmedidas aos mais variados acontecimentos. Desligo e ligo chorosa para o Márcio, que me acalma e lembra das coisas que tenho de agradecer antes de me desesperar.

De fato, Deus, ou seja lá qual força governe essa cadeia de causalidades que chamamos destino, achou um jeito de colocar justo nesse dia – de despedida do Márcio, de trabalho corrido, de dor nova – uma anja-faxineira-fada-madrinha para me lembrar de que sou cuidada (assim como colocou anjos-enfermeiros em meu caminho durante minha estada no hospital e em vários outros momentos). Há de colocar anjos em torno de minha mãezinha também, que tem muitíssimos mais méritos que eu nesta vida! E provavelmente em outras…

Termino meu prato de comida, tomo uma cerveja pra chamar o sono e espero por ele lendo mais um capítulo de “Todo Mundo Tem Um Anjo da Guarda” (Pedro Siqueira), que outra anja me recomendou. Antes dele chegar, vou rezar para o anjo-da-guarda de minha querida.

Parafraseando mamãe, que “seja tudo como Deus quiser!”

 

Uma avenida como aquela

Por muitos e muitos anos lembrei-me com saudades daquele dia.

Nem sei ao certo que idade tinha, mas tenho certeza de que foi antes do período escolar, que iniciei com 7 anos completos. Íamos, as três irmãs, espremidas no banco de trás, olhando para as nucas ainda jovens de nossos pais nos bancos da frente.

Papi estacionou o fusquinha azul na que hoje reconheço como sendo a rua Visconde de Inhaúma, bem próximo da esquina com a avenida Nove de Julho, em Ribeirão Preto.

Meu deslumbramento começou assim que pisamos os paralelepípedos da avenida para atravessar ao outro lado, onde pessoas já se aglomeravam em torno da pista com mão de direção no sentido Centro.

A primeira visão daquela avenida rodeada de casarões suntuosos e sombreada por árvores plantadas nos canteiros centrais ajardinados foi um choque.

E ainda haveria outros naquela manhã de descobertas.

Acostumada à paisagem de moradias humildes e encardidas da avenida de terra onde morávamos, emudeci de puro encantamento ao me deparar com as primeiras casas de fachadas amplas, arquiteturas de revista e lindos jardins.

Foi como entrar dentro de um conto de fadas!

Lembro-me de pensar que deveriam ser assim os castelos descritos nas histórias de princesas e príncipes que ouvia em nossa vitrolinha, tocando compactos de vinil coloridos.

Prestei pouquíssima atenção ao desfile que começara a ocorrer no leito carroçável da avenida, ao ritmo de bandas marciais – era um 7 de setembro, descobri depois.

Perdia-me na contemplação de cada detalhezinho dos casarões, cujas grades e portões eram baixos, deixando livre a visão de suas lindas fachadas e jardins – até hoje tenho saudades desse tempo em que a criminalidade não forçava a construção de muros altos e portões maciços.


‘A primeira visão daquela avenida rodeada de casarões suntuosos e sombreada
por árvores plantadas nos canteiros centrais ajardinados foi um choque’


Lembro-me de admirar uma moça sentada em uma das cadeiras de sua ampla varanda, rodeada por plantas de vasos e trepadeiras, linda em sua roupa toda branca e acessórios reluzentes nos braços, colo e orelhas. Imaginei ser uma princesa.

Guardei também a visão de um senhor acotovelado no parapeito da janela de um sobrado a assistir ao desfile de camarote. Passei a achar lindos os sobrados desde então e a me imaginar subindo a escadaria de um castelo sempre que acompanhava meus pais a uma visita a conhecidos que moravam em um. Mamãe passou a desconfiar de minhas vontades de usar o banheiro em toda visita – era meu pretexto para esquadrinhar as escadas.

Sorvi cada visão daquele dia com deleite emocionado. Ainda me lembro da sensação de estar dentro de um momento mágico, em que tudo era beleza e alegria.

Passei a esperar com ansiedade os dias 7 de setembro de cada ano e a me desapontar sempre que chegavam. Nunca mais o passeio em família pelo mundo encantado.

Quando iniciei a escola, inscrevia-me para todos os desfiles de 7 de setembro. Nas primeiras séries, ia vestida em figurino de bailarina que minha mãe costurava e enfeitava de lantejoulas e saia de tule. Davam-me a manipular o que chamavam “baliza” – um bastão todo enfeitado com fitas que deveríamos rodar a título de acrobacias.

Mas nunca mais os desfiles foram na avenida Nova de Julho.

Por alguns anos ocorreram na avenida Independência, que eu não entendia ser perto da Nove de Julho, inexperiente que era na exploração da cidade. Em meus últimos anos de ginásio, já ocorriam nas ruas de nosso próprio bairro de classe média baixa, para minha completa decepção.

Nunca me ocorreu pedir que meus pais me levassem a uma nova visita à avenida dos contos de fadas – naquelas épocas, crianças não tinham quereres!

Quando me reencontrei, adolescente, com a Nove de Julho, seus casarões já eram raros, a maioria havia tido seus lindos jardins e fachadas deformados por comércios e instituições bancárias e os paralelepípedos irregulares ressentiam-se do trânsito intenso de veículos em seu leito carroçável. Não havia mais cores e sorrisos e princesas sentadas em suas varandas adornadas de verde e ricos acabamentos.

Cheguei a chorar de desapontamento, mas, no devido tempo, conformei-me. Já não acreditava em contos de fadas.